
Frederik Peeters. Pílulas Azuis.
As pílulas em questão não são viagra, deixemos isso claro. São medicamento para conter o vírus HIV.
Vi essa indicação por aí, agora não me lembro onde. Mesmo assim deixo um registro de agradecimento porque é uma história muito linda e sobretudo útil, apesar de toda a informação produzida desde a identificação da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, SIDA, ou como é mais popularmente conhecida: AIDS.
É uma HQ autobiográfica, de um período da vida do premiado quadrinhista suíço: Frederik Peeters.
Pílulas Azuis vai contar desde o surgimento do interesse, da atração física surgida da parte de Fred para Cati em uma festinha entre amigos. Na ocasião ela estava saindo com outro rapaz.
Eles se encontraram anos depois, em outra situação. Ela já tinha um filho e vivia em um apartamento bem perto de Fred. Eles foram se aproximando, gostando da companhia um do outro até que Fred a convida para jantar no apê dele. Tudo muito bom, tudo muito bem, aí pinta um clima… ela assume uma postura séria e diz sem rodeios que gosta dele e, portanto, precisa informá-lo de que ela e o filho são soropositivo para HIV, o vírus da AIDS.
Então eles combinam de buscar informações sobre como ter um relacionamento seguro e tocam o namoro para frente.
O médico é um caso a parte. O médico é ótimo. Tosco, bem informado e ótimo. Apesar da tosqueira é o que o casal precisava.
O leitor vai acompanhar um relacionamento com perrengues e alegrias como todo casal que decide construir uma vida juntos teria. Junto dessa história de amor e cumplicidade, também serão apresentados aspectos relacionados à condição de saúde de Cati e do filho, avanços da medicina e da farmacologia, internações, cuidados para não contaminar Fred, o que pode ser feito para que uma mulher soropositiva não transmita o vírus para seus filhos na gestação ou no nascimento. tudo bem casual e nada piegas.

Frederik Peeters
É lindo, tenso, triste as vezes e engraçado outras. Fundamental para desfazer preconceitos.
A capa é linda. Aqui no Brasil, Pílulas Azuis, sai pela editora Nemo.
Píluas Azuis venceu o principal prêmio do gênero HQ da Europa, o Polish Jury Prize, no festival de Angoulême, na França.

Philomena (livro)
Essa HQ trouxe a oportunidade de discutir uma outra obra que não consigo classificar num ranque de estrelas tem dia que penso nela como 4, tem dia que penso como um 3 (que é uma boa nota). Recomento que leiam? Se quiserem, sim. Estamos falando de Philomena de Martin Sixsmith.
Aí você que curte cinema e assistiu àquele filme Philomena de 2013, aquele com Judy Dench no papel principal, que foi indicado a quatro Oscars (melhor filme, melhor atriz, melhor roteiro adaptado e melhor trilha sonora) e que levou o Bafta de melhor roteiro entre outros prêmios, deve estar pensando: esse filme até menciona a causa da morte do filho dela, mas não é sobre AIDS é sobre a igreja católica irlandesa roubando os filhos de mães solteiras. Aqui não cabe o termo mãe solo, porque o motivo de as crianças terem sido vendidas é unicamente o fato de suas mães não terem se casado com os pais desses bebês. Inclusive, muitas garotas como Philomena não tiveram nem a chance de contar aos progenitores que eles tinham filhos a caminho.
O roteiro adaptado focou no drama da mãe, enquanto o livro divide o protagonismo entre a mãe e o filho. Acompanha a vida de Anthony, que depois foi renomeado Michael, com a família estadunidense que o adotou (ou adquiriu).
O roteirista optou por retratar a mãe deixando de lado a história conflituosa e até contraditória do filho. É um filme que eu adoro, diga-se de passagem. Nesse ponto o filme se diferencia do livro, que em sua versão original em inglês se chama: The Lost Child of Philomena (A criança perdida de Philomena, tradução livre)
Assim como Pílulas Azuis, é uma história real com alguns personagens importantes da política e igreja católica estadunidense e da igreja irlandesa. Michael Hess, o filho dela, era membro do partido republicano, mesmo sendo gay e se identificando mais com as pautas dos democratas.

Philomena e Michael Hess
O marido de Michael Hess, Mark, critica o perfil traçado do cônjuge e considera a parte sobre Philomena bastante fiel à verdade. Aí não dá para saber se a história de Michael foi bem contada, mas por não ser muito elogiosa, desagradou aos mais próximos dele. Também pode ter tido excessos por parte do autor/jornalista. E ainda podemos considerar que pode ter havido um pouco de cada coisa.
A treta que liga Pílulas Azuis a Philomena é a AIDS, que matou Michael Hess e com quem Cati convive bem há anos. Mas, não só isso. Outra ligação está na vida conjugal de longos anos apesar do fantasma do vírus. Frederik e Cati estão juntos e bem. Mark e Mike ficaram juntos até o último suspiro de vida de Mike. Mark não se contaminou e que Mike viveu por algum tempo sem manifestar sintomas. Em ambos os casos o uso dos preservativos foi um aliado.
Michael teve uma vida financeiramente confortável nos EUA, com uma mãe amorosa, irmãos pré-existentes que não o aceitavam bem e um pai adotivo abusivo (esse pai foi inclusive a causa para que ele se tornasse principal advogado do partido Republicano).
Martin Sixsmith construiu um perfil psicológico demonstrando como o fato de ter sido tirado de sua mãe biológica, a homossexualidade e a opressão do pai adotivo moldaram o caráter e a vida daquele talentoso advogado.
Mike, depois de adulto, começou a procurar a mãe biológica, tendo inclusive ido à Irlanda por duas vezes.

Michael no convento de Roscrea, Irlanda.
Michael nunca assumiu sua orientação sexual para o partido. Sempre comparecia aos eventos sociais com uma amiga como acompanhante, que foi prontamente assimilada pelos colegas como sendo sua companheira.
Em paralelo, ele tinha relacionamentos com homens, tendo sido o principal o vivido com Mark, que foi seu companheiro até o fim de sua vida.
Mark não era soropositivo. E nem Mike era quando começou a namorar Mark. Aí é que está a parte contestada por pessoas mais próximas a Mike: segundo o autor, ele era alcoolista, usuário de drogas e frequentador de bares para praticantes de sadomasoquismo. Como se uma vida de autodestruição aliviasse em parte os traumas. Uma vida tripla: heterossexual para os republicanos, casado e feliz com Mark e frequentador de ambientes lado B, tudo ao mesmo tempo.
É sabido que a AIDS ficou conhecida por anos como a praga homossexual e bora estabelecer que não é. Até a ciência demonstrar que focinho de porco não é tomada… o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ aumentou assustadoramente. No Brasil, só em 2020, foi derrubada a norma que proibia que homens que tivessem relações sexuais com outros homens doassem sangue. Quase quatro décadas sem receber nos bancos de sangue as doações de uma parcela significativa de pessoas plenamente saudáveis.

Philomena e o Papa Francisco, que se desculpou com ela em nome da Igreja.
Para não ficar só com o mau exemplo, destacamos que o programa de AIDS do Ministério da Saúde brasileiro serviu de exemplo para diversos países, inclusive alguns considerados mais desenvolvidos que nós. Nesse programa, o governo distribui gratuitamente preservativos e medicações para soropositivos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
A quebra de patente dos medicamentos foi fundamental para baratear os custos e tornar viável um programa desta magnitude.
Pílulas Azuis não é nem de longe tão dramático quanto Philomena.
Não é um livro sobre ser rotulado como uma ameaça ambulante. É um livro de uma família em construção por um casal que tem grande entrosamento e amor, que precisou fazer alguns ajustes na vida conjugal e que passado esse tempo das adequações teve uma história de amor como as mais corriqueiras. O objetivo é mostrar que a vida de um casal em que uma das partes é soropositiva pode ser absolutamente normal.
Que família não tem questões? Essa foi a de Cati e Frederik, em outras é falta de grana, filhos complicados, doenças graves. Às vezes entra em modo cruzeiro às vezes o navio balança muito. Pílulas Azuis, no fim das contas, é uma história de um casal superando desafios, ou melhor dizendo, acomodando algumas condições que a realidade impôs, e tocando o barco com a verdadeira vontade de fazer o relacionamento dar certo. É lindo!
PEETERS, Frederik. Pílulas Azuis. Tradução: SCHEIBE, Fernando. São Paulo: Editora Nemo, 2021.
SIXSMITH, Martin. Philomena. Tradução: BELHASSOF, Cláudia Mello. Campinas: Versus, 2014.
FREARS, Stephen. Philomena. UK: Paris Filmes, 2013.
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