
Pequena Coreografia do Adeus
“Fechei a porta, ganhei
a Rua
achei que
sair de casa seria um momento de vozes altas e
pratos tentando acertar a minha cabeça, mas
tudo o que eu ouvia era um zumbido
insistente, uma mosca perdida
no fundo de mim.
segui Avançando
de repente me vi correndo
até o ponto
de ônibus
(o coração na boca)“
Aline Bei. Pequena Coreografia do Adeus. p. 165.
Tenho lido coisas maravilhosas da literatura contemporânea brasileira. E fica até difícil fazer a curadoria do que trazer para cá.
Aline Bei, escritora sensação do momento, minha xará, estreou ganhando o prêmio São Paulo com O Peso do Pássaro Morto, que é lindo, poético de uma tristeza sufocante. Ela repetiu a dose de sufocamento em Pequena Coreografia do Adeus, que hoje é finalista do prêmio Jabuti.
Nossa, como me reconheço diversas vezes na protagonista Júlia. Não vou fazer aqui um momento terapia. Inclusive já fechei minha gavetinha de lamúrias. Aterei-me ao livro e outras personagens maravilhosas. Já já chegaremos nelas.
Júlia Terra é uma menina criada em um lar sem amor. A mãe de Júlia veio de um lar sem amor, ficou marcada como a causa da infelicidade materna no imaginário de sua progenitora. A mãe de Júlia foi melhor que a avó dela, entretanto, talvez por não saber fazer diferente, continuou o ciclo de violência e autoritarismo.
A raiva da mãe se estendia não só a Júlia, mas também ao esposo, que deixou de ser esposo, quase deixando também de ser pai, se é que em algum momento ele assumiu essa função, mesmo quando estavam na mesma casa.
A relação de Júlia com o pai e a mãe me lembraram muito a de Jannette McCurdy em I’m Glad My Mom Died (Estou Feliz que Minha Mãe Morreu). Livro de memórias que foi comentado aqui recentemente.
Tanto a ficção de Aline Bei quanto a realidade de Jannette McCurdy vão tratar de um assunto que hoje é muito mais debatido, mas que nem por isso deixa de ser polêmico que é a maternidade nada idealizada.
A menina que cresceu nesse lar pouco receptivo, acabou replicando a violência de que era vítima, se tornando uma criança/adolescente que reagia ao mundo com raiva e até agressões físicas. O pouco diálogo tanto por parte da mãe agressiva quanto do pai omisso deixou Júlia sem vocabulário, sem repertório linguístico e emocional para lidar com suas tristezas e frustrações. Ela passa então a escrever um diário. E é escrevendo que processará a vida que lhe é incompreensível. Ela vai entender que é mais que aquilo, que ela pode traçar um plano que a dê outras experiências. O diário foi fundamental para que Julia percebesse que o que lhe era oferecido pelos pais não lhe agradava. Aí a gente vai acompanhar a reinvenção da personagem.
O livro é dividido em três partes: Júlia; Terra e Escritora. Tudo narrado em primeira pessoa.
Na primeira, a autora constrói a fase que corresponde à infância e início da adolescência. Inicia morando com os pais, depois quando eles se separam e ela passa a morar com a mãe e visitar o pai periodicamente.
Depois é a parte em que ela jovem adulta arruma um emprego em um café e sai de casa para morar em um quarto de pensão. Vai desabrochando aos poucos, tateando a liberdade. Tendo experiências escolhidas por ela sem recriminação, despindo da apreensão que a havia cercado até ali.
Nesse ponto ela faz uma descoberta sobre o pai, sobre as intenções do pai em termos artísticos e essa descoberta vai ser gatilho para a última parte, que é quando ela assume que é uma escritora.
O final desse livro… perturbador. Precisava de mais uns parágrafos (ou seriam estrofes?) Não que ele pareça inacabado. Não é isso. A história fechou. Mas sabe aquela sensação de que tudo bem, acabou a história, mas eu queria só o day after. Tipo quando o príncipe acorda a Branca de Neve e foram felizes para sempre… Como assim felizes para sempre? O leitor quer a manhã seguinte. Pelo menos mais um dia para saber se ela fez mesmo uma boa coisa para a vida dela.
Antes de causar um mal entendido ou uma injustiça, Aline Bei não escreveu um final clichê ou banal. É um soco o final. mas é como se a gente não soubesse em que ponto da cara o soco pegou e fica com o gosto de que essa resposta viria na frase seguinte. Entendeu?
É muito lindo. O Peso do Pássaro Morto é lindo e achei esse mais lindo ainda.
A profundidade dos sentimentos e emoções transpostos para o papel se deve muito ao estilo da autora.

Aline Bei
Aline consolidou belamente sua prosa poética, seu estilo, indo ainda mais fundo na alma da personagem.
As frases parecem versos, ela usa caixa alta, sobrescrito, itálico, pausas, varia o tamanho da fonte e vai fazendo uma coreografia mesmo. Recursos concretistas, pondo o visual combinado ao textual para ampliar os sentidos e o alcance das frases.
A protagonista floresce quando descobre a liberdade nas pequenas escolhas. Ela continua visitando os pais, mesmo sabendo de tudo o que a incomoda na casa materna e reconhecendo o afastamento intransponível entre ela e o pai.
Agora nos ateremos a um aspecto que é o trabalho. Não o de escritora, do qual ela pretende fazer carreira, mas o emprego que permite que ela inicie de fato sua vida adulta: o café. Nesse café trabalham apenas ela e a dona. A patroa e a dona da pensão que aluga o quarto em que Júlia mora vão ser de grande ajuda para esse processo de liberação. Elas serão, além do diário, um ponto de escuta e de oferecimento de possibilidades por estarem atentas, verdadeiramente interessadas nas conversas que trocam. Júlia retribui o afeto na mesma medida.
E é nesse ponto que Pequena Coreografia do Adeus vai lembrar outras duas mulheres: Phoebe (Fleabag) e Amelie Poulain. Por que? Porque elas também trabalham em cafés e porque esses cafés têm parte na construção da personalidade delas, no amadurecimento.
Para Júlia o café representou a independência financeira, a possibilidade de se liberar e assumir responsabilidade por si mesma. Representou um lugar onde pessoas até então desconhecidas foram se aproximando e se incorporando à vida dela trazendo novas perspectivas, ar fresco. Esses personagens que passaram pelo café durante o expediente de Júlia deixaram marcas.
O Fabuloso Destino de Amelie Poulain é um dos meus filmes favoritos da vida. Amelie é uma incurável sonhadora, que enxerga prazeres e possibilidades de felicidade em tudo. Não só para ela, mas para os que a cercam. Ela envolve seu cotidiano em mágica criada por ela mesma.
Quem curte astrologia vai ter que concordar que Amelie é de peixes. Só pode.
Ela vem de um lar confuso, mas não tão estéril quanto o de Júlia. E o trabalho dela quando cresceu e se tornou adulta foi no Café des Deux Moulins (que realmente existe no bairro de Montmartre em Paris, capital da França). O café para Amelie não é só o ganha pão. É matéria prima. Assim como Júlia ela vai ficar amiga dos habitués, vai conquistando-os, percebendo os buraquinhos em suas almas e bolando planos mirabolantes para preencher aquelas faltas. Ela vai intervir na vida das pessoas que a cercam transformando todas aquelas existências para melhor. Até o dia em que vão interferir na vida dela. É a coisa mais linda! “Les temps sont durs pour lês rêveurs.”*

Café des 2 Moulins
Então já temos um café com a atendente se descobrindo, temos a atendente que também serve felicidade por linhas tortas e para fechar: a atendente bagaceira.
Fleabag, disponível no Prime Video, se você ainda não viu, recomendo fortemente.
Phoebe Waller-Bridge, é a redatora, produtora e atriz principal dessa série em duas curtas temporadas sensacionais. Devo dizer que a segunda temporada é ainda melhor. Dá para ter terceira temporada, dá. Mas dizem por aí que a autora achou que já tá bom e vai parar. Não julgo. Vale o mesmo que eu disse para o final de Pequena Coreografia do Adeus.
Fleabag, ou saco de pulgas em tradução livre, é o nome da série cuja protagonista tem o mesmo nome da criadora: Phoebe.
É uma mulher bonita, jovem, com uma vida sexual bastante ativa e dificuldade de construir conexões verdadeiras no campo amoroso.
Aí à medida que vai desenvolvendo a história a gente vai tendo vislumbres de por que ela é assim.
A mãe que parece que era a pessoa que melhor a compreendia, faleceu. O pai se casou de novo com uma mulher que não se dá nada bem com as enteadas. Sim, Phoebe tem uma irmã.
Ela e a irmã tem uma conexão bem forte e peculiar. A irmã é o exato oposto: responsável, bem estabelecida na carreira, casada, séria. E ela é do rock: sai todas as noites, bebe todas, muda constantemente de parceiro e… tem um café, que está a beira da falência. Uma coisa em comum entre elas é a infelicidade. As duas estão digerindo a morte da mãe, a nova madrasta e outras questões pessoais bastante dramáticas.
O café tem muita importância na vida de Phoebe. É mesmo um mistério o motivo que a leva em insistir naquele negócio sem futuro até que… deixa de ser um mistério. Caramba, é sufocante. Assim como o livro de Aline Bei, Fleabag, por seus méritos e características, vai fundo na alma da personagem. E a gente acaba descobrindo mais coisas em comum com ela do que gostaria de admitir. Um coisa fenomenal em Fleabag são as pausas em que a protagonista, narradora, para olha direto para a câmera e conversa com o espectador sem que as pessoas que estão ali na mesma cena percebam. É como se o espectador entrasse na cabeça dela. Outra vantagem é que vai te destruir por dentro, mas é muito engraçado. É rir da própria desgraça.
Sabe quem concorda comigo sobre Fleabag? Barack Obama. Ele inclusive é citado em uma cena hilária e bem no início da série. Dá para dizer que a Fleabag também gosta muito do Obama.
*São tempos duros para os sonhadores (frase do filme O Fabuloso Destino de Amelie Poulain).
BEI, Aline. Pequena Coreografia do Adeus. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
MCCURDY, Jannette. I’m Glad My Mom Died. EUA: A Simon & Schuster Book, 2022.
JEUNET, Jean-Pierre. O Fabuloso destino de Amelie Poulain. França: 2002.
WALLER-BRIDGE, Phoebe. Fleabag. UK: Amazon, 2016-2019.
08/06/2023 at 23:17
Acabei de ler o livro e amei a resenha e especialmente a menção à Amélie Poulain, um dos meus filmes favoritos. Fui no Deux Moulins em 2014 e foi tão mágico! Só acho que O peso do pássaro morto é melhor..me assombrou e maravilhou na mesma medida.
19/06/2023 at 08:38
Concordo com vc sobre o “Peso do Pássaro Morto”. Gastei mais lenços com o primeiro livro da Aline Bei e me marcou profundamente. Gostei bastante dos dois. Tomara que ela continue produzindo linda literatura. Virei fã.
Sobre Amelie Poulain…. sem palavras. esse filme também é um dos meus favoritos!