“Vira a chave para a direita, empurra a porta. Nada. Olha para os lados em busca de ajuda. Nada. Vira a chave para a direita mais uma vez, só que agora deixa que a mão volte com suavidade para a esquerda, como quem solta ou libera alguma coisa, e ouve então um clique. Sem que ele empurre, a porta destrava e se abre sob seu próprio peso. Murilo mais uma vez olha em volta, agora para se certificar de que ninguém foi testemunha do seu desnecessário sofrimento prévio. Sente-se envergonhado e, em alguma medida, ofendido pela porta.
Entra rápido no apartamento escuro e tem a sorte de ali ainda haver lâmpadas, e, ainda, energia elétrica. Os poucos móveis estão dispostos sem ordem, como se alguém tivesse abandonado pela metade a tarefa de levá-los embora: uma mesa, três cadeiras, uma poltrona de couro e um colchão sobre um sofá puído amontoam-se no meio da sala; na cozinha, a geladeira está grudada de frente contra a pia, ao lado de marcas de arrasto na cera vermelha do piso. Encontra, no quarto, os estrados da cama erguidos em frente à janela. as portas do guarda-roupa abertas a revelarem nada. Descobre um tapete enrolado dentro do banheiro, equilibrado sobre a quarta cadeira que pertencia à sala. Passa a mão sobre a superfície empoeirada do espelho e é através do reflexo que, no canto dos azulejos verdes formado pela junção do box com a parede, ele a avista. Pequenina, ensimesmada, sobrevivente de sabe-se lá quais privações, uma tartaruga verdíssima descansa.”
Julia Dantas. Ela se chama Rodolfo.
Essa vai especialmente para você brasileiro que está precisando de um respiro nesse pós eleição. Um romance leve e inteligente para relaxar! E ainda é de autora viva e produzindo. Temos que intercalar os clássicos com os novos. Dostoiévski não ganha mais nem um Rublo com a obra dele. Reconheço ser mais difícil escolher títulos contemporâneos, pelo menos para mim é. Por isso aceito de bom grado indicações e indico sempre que posso.
Julia Dantas, escritora brasileira contemporânea, escreveu a obra Ela se Chama Rodolfo, publicada pela editora DBA. Julia é gaúcha de Porto Alegre e tem outros dois livros publicados: Ruína y Leveza e Sabrina é um Bonito Nome. Ruína y Leveza foi finalista do prémio Açorianos
O livro até traz personagens com orientações sexuais diversas da heteronormativa e conversa sobre temas importantes nesse sentido, porém não é esse o principal, se é o que você pensou ao ler o título. Foi o que eu pensei e foi uma expectativa quebrada, uma grata surpresa.
Começando pelo fato de que Rodolfo nem gente é. É uma tartaruga.
É um livro coração quentinho, engraçado, cheio de histórias entrelaçadas.
Murilo é um cara que tem curso superior, ele é formado em letras, gosta de escrever, mas não atua em sua área de formação. Ele é porteiro. Vigia de um prédio chique de escritórios.
Sim, muita gente formada em cursos universitários não trabalha na área de formação e um tanto dessas pessoas acabam em trabalhos com remuneração aquém de suas qualificações acadêmicas por questões diversas, passando pela falta de oportunidade. Não é o caso de Murilo. Ele optou por trabalhar como vigia. Era o que o pai fazia, era o que ele fazia antes e durante o curso de Letras e é o que continuou fazendo.
Murilo está saindo de uma relação amorosa com Gabbriela. Gabbriela é mais jovem e mais livre que ele. Gosta de experimentar e está passando por uma fase jovem mística, cooptada por uma seita diferentona. Murilo reprova, mas está juntando dinheiro para ir visitar Gabbriela no tal retiro em Goiás.

Julia Dantas
Nesse processo de desfazer a casa que dividia com a namorada, o personagem consegue alugar um apartamento mobiliado de uma mulher que está fora do Brasil e que cobra um preço bem razoável pelo imóvel. Dessa locatária ele só tem o nome, Francesca, e um endereço de e-mail.
Ao chegar no apartamento, Murilo se depara com uma tartaruga pequenininha e escreve para a dona do apê para saber o que fazer com a tartaruga. Então, recebe instruções de levar o bichinho para um amigo da dona.
Acontece que não será fácil achar alguém que queira ou que tenha condições adequadas para cuidar de da tartaruga que se chama Rodolfo.
Murilo vai tentar conseguir quem cuide de Rodolfo ao mesmo tempo que vai conhecendo melhor a locatária por meio dos e-mails que eles vão trocar e que rapidamente vão extrapolar o objetivo de arrumar um cuidador para a tartaruga e adentrar o campo das confissões e conselhos. A cada nova resposta a dona vai indicar um novo local para que Murilo procure um cuidador para Rodolfo. Nessa saga, ele percorrerá vários locais da cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, conhecerá pessoas bem diferentes umas das outras, fará amigos, arrumará um colega de apartamento, evoluirá.
Murilo foi incapaz de deixar Rodolfo com qualquer um. Ele se afeiçoou à tartaruga. É fofo perceber o desenvolvimento dessa relação. O mais importante do livro é a jornada de autoconhecimento do protagonista, que vai percebendo que o mundo é maior que a caixinha em que ele esteve durante toda a vida.

Quincas Borba
Um outro personagem maravilhoso e clássico da literatura brasileira e que herdou um animal foi Rubião, personagem principal de Quincas Borba, de Machado de Assis.
Mas o personagem principal de Quincas Borba não é Quincas Borba? Não.
Quincas Borba era um homem muito rico desenvolvedor de uma filosofia chamada por ele de Humanitas, que falece logo nos primeiros capítulos da obra que leva seu nome.
Ele não é novo, esse personagem foi criado em Memórias Póstumas de Brás Cubas, dez anos antes da publicação de Quincas Borba. Lembra? Ele aparece como velho conhecido de Brás Cubas e rouba o relógio do amigo.
Isso não quer dizer que o leitor apenas verá o nome Quincas Borba nas primeiras páginas do livro e também não quer dizer que assim como o personagem Brás Cubas, Quincas Borba seja um defunto autor ou coisa que o valha. O nome vai aparecer durante todo o livro porque Quincas Borba o homem deu a seu cachorro o nome de… Quincas Borba, como forma de prolongar a existência depois que ele se fosse.
Rubião, que era um professor pobretão, fica amigo de Quincas Borba com intenção de desfrutar de sua riqueza e também, em segundo plano, porque lhe tinha certa afeição. Passa então a ser cuidador do enfermo e espera entrar para o testamento, ganhando qualquer coisa que o moribundo queira lhe deixar.
Para surpresa de Rubião, Quincas o faz herdeiro universal, com a condição de cuidar do cão, e a obrigação de dar ao bichinho um enterro digno quando chegasse a hora.
Para Rubião, isso não foi um grande sacrifício e nem mesmo havia no testamento cláusula que retirasse dele a fortuna em caso de fuga do animal, por exemplo. Ele era afeiçoado ao cão. Em dado momento passa inclusive a suspeitar que a alma do amigo Quincas habita agora o corpo do cão Quincas.
Assim como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba é uma obra hilária, que, entre outros tantos aspectos, trata de um homem que passa a ser dono de um cachorro por força do destino, assim como Murilo não escolheu cuidar de Rodolfo.
A Gabbriela, apesar de só aparecer nas lembranças de Murilo, é uma personagem interessante.
Ela se joga nas experiências e já tinha forçado Murilo para fora de sua zona de conforto muitas vezes. Ele ia topando para satisfazê-la, meio que para parecer moderno e mantê-la por perto. O sentimento de Murilo por ela era realmente forte, ele se encantou pelo espírito livre da companheira.
Gabbriela me lembrou a personagem Shug de A Cor Púrpura, clássico de Alice Walker, vencedor do Prêmio Pulitzer.

A Cor Púrpura
A Cor Púrpura é narrado por uma mulher chamada Celie, que era maltratada e abusada desde a infância pelo pai, que a deu em casamento para um homem chamado Albert. Albert na verdade queria se casar com Nettie, a irmã bonita de Celie, mas o pai delas não permitiu, então Albert ficou com Celie como quem diz, tudo bem eu compro esse eletrodoméstico mesmo, já que não posso pagar pelo outro.
Na casa desse marido ela vai continuar sofrendo muita violência doméstica e sendo tratada como uma escrava.
Celie tinha uma ídola: uma cantora chamada Shug Avery, ela tinha inclusive uma foto recortada guardada como um tesouro. Assim como Celie e Albert, Shug era negra. A diferença entre elas era que Shug era bonita, cantora e livre.
Ela era idolatrada por todos da região até porque era ali que Shug havia nascido e se criado.
Um dia, para a surpresa de Celie aparece em sua casa ninguém mais ninguém menos que Shug. Ela era o amor da vida de Albert, que não se casou com ela porque os pais não a consideravam mulher direita. Agora Shug estava doente e Albert se propôs a cuidar dela, ou melhor, Albert a trouxe para casa para que Celie cuidasse dela, da amante.
Assim como Gabbriela mudou Murilo e depois foi embora porque queria mais da vida do que ele poderia oferecer, Shug vai mudar Albert, Celie e os filhos de Albert.
Ao contrário do que possa parecer, visto que Shug é a amante de Albert, sua presença fará muito bem para Celie. A influência de um espírito livre é sempre transformadora. Dos três livros indicados nesse texto, A Cor Púrpura é o mais sofrido. Até metade do livro ele parece que vai ser só tristeza, mas não é. Pode continuar que o final vai te deixar feliz. Todas essas indicações vão melhorar o clima pós stress. Um brasileiro contemporâneo, um brasileiro clássico hilário e um estadunidense perfeitinho.
A Cor Púrpura foi adaptado para o cinema em 1985. Eu vi há muito tempo, mas lembro que era ótimo. O que não me lembro muito bem era o quão fiel ao livro o filme foi. Fica aí o trailer para quem se interessar. Foi dirigido por Steven Spielberg, Whoopi Goldberg interpretou Celie e Danny Glover interpretou Albert. Também merecem destaque as atuações de Oprah Winfrey como Sofia e Margareth Avery como Shug. Esse filme foi indicado a 11 Oscars. Cara, a trilha sonora é do Quincy Jones e isso já é motivo para assistir. A Cor Púrpura está disponível na HBOmax.
DANTAS, Julia. Ela Se Chama Rodolfo. São Paulo: DBA, 2022.
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Panda books, 2020.
WALKER, Alice. A Cor Púrpura. Tradução: Betúlia Machado, Maria José Silveira & Peg Bodelson. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2021.
SPIELBERG, Steven. A Cor Púrpura. EUA: Warner Bros Pictures, 1985.
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