
Ensaio Sobre a Lucidez
“Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze depois de fechar com violência o guarda-chuva empapado edespir uma gabardina deque pouco lhe havia servido durante o esbaforido trote de quarenta metros desde o lugar onde havia deixado o carro até a porta por onde, como o coração a saltar-lhe a boca, acabava de entrar. Espero não ter sido o último, disse para o secretário que o aguardava um pouco recolhido, à salvo das bátegas que, atiradas pelo vento, alagavam o chão. Ainda falta o seu suplente, mas estamos dentro do horário, tranquilizou o secretário, A chover dessa maneira será uma autêntica proeza se cá chegarmos todos, disse o presidente enquanto passavam à sala onde se realizaria a votação. Cumprimentou primeiro os colegas da mesa que actuariam como escrutinadores, depois dos delegados dos partidos e seus respectivos suplentes. Teve o cuidado de usar para todos as mesmas palavras, não deixando transparecer na cara nem no tom de voz quaisquer indícios que permitissem perceber as suas próprias inclinações políticas e ideológicas. Um presidente, mesmo de uma assembleia eleitoral tão comum como esta, deverá guiar-se em todas as situações pelo mais estrito sentido de independência ou, por outras palavras, guardar as aparências.”
José Saramago. Ensaio sobre a lucidez. p. 9.
José Saramago, único autor de língua portuguesa laureado com o Nobel, escreveu essa obra interessantíssima, com um final de tirar o fôlego. Gosto muito desse tipo de final.
Ensaio Sobre a Lucidez é uma continuação de um dos maiores sucessos do autor que foi o livro Ensaio Sobre a Cegueira, que inclusive virou filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meireles.
Eis um vislumbre de Ensaio sobre a Cegueira, só para que entendamos melhor essa segunda parte, que é o livro da vez por aqui.
Uma epidemia de cegueira branca acomete toda a população de uma cidade imaginária. Essa cidade é a capital de um país. Na verdade, a condição administrativo-política da localidade é um pouco enevoada e isso não vem ao caso.
Essa cegueira é, segundo a descrição dos personagens, como estar mergulhado em leite, não se enxerga nada além da cor branca densa.
Os primeiros acometidos foram os pacientes de um oftalmologista, provavelmente contaminados pelo paciente zero que lá esteve em condição de emergência. O governo alarmado pelo rápido alastramento da doença, isolou os cegos em um manicômio desativado e para lá ia mandando todos os que iam se contaminando e os que com eles estiveram. Separando os cegos e os possivelmente contaminados que ainda não haviam manifestado sintomas em distintas enfermarias, chamadas no livro de camaratas.

Ensaio sobre a Cegueira
É o caos. É a descida do civilizado ao bárbaro, do salve-se quem puder, do “pirão pouco, o meu primeiro”.
Entre todos aqueles cegos dois personagens tiveram vantagem: a mulher do oftalmologista, que foi a única que não cegou, e um cego de nascença, que já sabia como se virar.
Esse é um livro brutal que ao contrário de As Intermitências da Morte, já comentado nesse blog, apresenta um Saramago sério. É um livro sem alívio cômico.
Pronto. Isso é o suficiente para que queiram ler Ensaio Sobre a Cegueira e para que compreendam o que vai ser – sem spoilers – Ensaio sobre a Lucidez.
Em Ensaio sobre a Lucidez, em que temos de volta o Saramago irônico e ácido, já se passaram quatro anos da epidemia de cegueira.
Aquela cidade está em época de eleições e disputam o pleito três partidos políticos: o p.p.d. (partido da direita), o p.p.m. (partido do meio) e o p.p.e. (partido da esquerda). Assim em letras minúsculas mesmo. Todos eles são propositalmente representados de forma bastante caricata.
No dia do pleito, uma chuva no estilo diluviano atrapalha os eleitores a chegarem em suas sessões eleitorais. Somente cerca de dez por cento dos aptos a votar o fizeram e mesmo assim houve uma quantidade absurda de votos em branco. O Governo então faz o que era o óbvio, agenda a eleição para a próxima semana, ocasião agraciada com um lindo dia de sol.
Terminado o horário da votação, apura-se o resultado e… Tchã tchã tchã tchã….: 83% de votos em branco.
O governo dá aquela surtada e sai fazendo ações descabidas em retaliação aos governados insurgentes: obriga pessoas para passarem pelo polígrafo a fim de saber por que votaram em branco, decreta estado de sítio, foge para as montanhas…
Sim, o presidente, primeiro ministro, ministros, forças policiais, deputados e toda uma caravana abandonam a cidade, deixando os moradores a sua própria sorte para que tomem um castigo e reflitam sobre a falta que o governo lhes faria. A cidade permanece em estado de sítio e esta cercada para impedir a saída dos cidadãos.
Vai dar certo? Leia o livro para saber.
Onde está a conexão com Ensaio sobre a Cegueira? Primeiro no fato de que estão a comparar a cegueira branca da epidemia, com uma “cegueira” branca dos votos em branco. E aí aparece o nome do livro quando um dos membros do governo questiona se trata-se de cegueira ou de lucidez, o que suscita outra dúvida: sendo lucidez, os lúcidos são os que votaram em algum candidato, os que votaram em branco ou ainda o governo em sua interpretação sobre a cegueira alheia.
Aí segue o baile com o questionamento de se o trauma não trabalhado da época da cegueira branca poderia ser a causa desta nova crise. E a partir daí personagens do primeiro livro vão aparecer nesse aqui.

José Saramago
Esse livro é bem engraçado. Tem umas pérolas anedóticas como essa: “Eram dez horas quando cheguei à rua da mulher do tipo que escreveu a carta, Perdão, da ex mulher, apressou-se a o agente a corrigir, não é correcto dizer dizer ex-mulher significaria que a mulher teria deixado de o ser, E não foi isso que aconteceu precisamente, perguntou o inspetor, Não, a mulher continua a ser mulher, o que deixou de ser foi esposa.”
Certamente, você deve ter reparado na pontuação e no “correcto”, bem, meus amigos, a pontuação é uma das marcas mais importantes do estilo Saramago de escrita. E o correcto se deve à origem do escritor. É escrito em português de Portugal e isso não atrapalha em nada. A pontuação é bem mais desafiadora. Recomendo aos leitores que se esforcem para passar da página trinta. Àquela altura, estarão habituados e a leitura seguirá seu curso sem grandes problemas.
E cá estamos nós, gajos brasileiros à beira de uma eleição explosiva. Vejam bem. Não devemos seguir o caminho dos personagens do Saramago. Não desperdicem seu voto num tempo tão decisivo. Certeza que algum dos dois candidatos, tão diferentes entre si, lhe parecerá melhor, ainda que não corresponda exatamente ao que considera ideal para seu país. Dia 30, vá às urnas e escolha um presidente (e também um governador a depender do seu estado).
Várias coisas para pensar depois dessa leitura. Entre as mais urgentes, recepcionar os diferentes, ainda que eles tenham sido arrogantes ao nos confrontar.
Voltemos ao caso em que o governo examina o fenômeno dos votos em branco à luz de um trauma não superado ou nem mesmo debatido, que teria criado uma crise de desconfiança e desilusão na população da capital daquele país imaginário.
A cegueira branca foi um trauma comparável às marcas deixadas por uma guerra. Para aquele trauma a resposta tanto dos governantes quanto da própria população foi obliterar, fazer de conta que não aconteceu. Por que isso? Porque doía demais. Durante aquele período em que ninguém conseguia enxergar, o pior da condição humana aflorou transformando todo o comportamento social em instinto e egoísmo. Quando tantos cidadãos, para levar vantagem ou para se defender, fizeram cosias das quais não seriam capazes em condições normais e das quais não tinham orgulho. Eram feridas abertas que não receberam o devido tratamento.
O Brasil tem várias dessas questões chaga aberta tapada com um paninho para as quais, como nação, não olhamos e preferimos seguir a vida como se não tivessem ocorrido. O extermínio da população indígena, a escravização de africanos e seus descendentes por mais de 300 anos, a ditadura militar que durou vinte anos torturando e matando antagônicos. Ah, mas a luta armada também cometeu crimes… Verdade. E também foram anistiados pela mesma lei. O que há de fundamentalmente diferente entre os crimes dos dois grupos é que apenas um deles transformou violência sádica em política de Estado.
O fato de que o Brasil não lidou adequadamente com essas questões, produziu e continua a sustentar e justificar desigualdades tanto ao acesso a bens e serviços quanto no tratamento despendido pelo governo nas questões afetas à segurança. Indígenas continuam sendo dizimados em um estado de invisibilidade chocante, além de terem sido escolhidos como bode expiatório para o atraso no desenvolvimento do país por alguns grupos que, quero crer, não representam a maioria dos brasileiros. E a população afrodescendente foi eleita para ser eternamente subalterna. Sendo também dizimada por forças policiais, que conscientemente ou não os enxerga como potenciais criminosos.
O Brasil precisa rever suas chagas. Vai doer. Vai ser um processo longo. Sentar-se sobre o problema ou maquiá-lo para que pareça menos feio do que é, não nos tem deixado em boas mãos ou permitido a nossa evolução como nação.
Por falar em disfarces e maquiagem, voltemos ao bom humor do livro. Em um trecho, o grupo encarregado de investigar o motivo da onda de votos brancos, passou a se tratar por codinomes para preservar as identidades em caso de grampos ou microfones escondidos. O Ministro do Interior, o comissário, o inspetor e o agente, se chamavam por nomes de pássaros, como Albatroz ou Papagaio-do-mar. Posteriormente, esse grupo inventou codinomes também para os investigados.
Em uma missão especial, o ministro do interior mandou o comissário entregar material a um de seus capangas, naquela ocasião ele usou o que no livro se chamou de “santo e senha” e provavelmente é uma expressão portuguesa para uma frase que teria que receber uma resposta determinada para identificar se estaria a falar com o interlocutor certo.
Essas passagens me lembraram duas obras muito marcantes: Chapolin e Cães de Aluguel.
Em Chapolin, que é aquele herói atrapalhado que veste uma roupa vermelha com um coração amarelo no peito, às vezes haviam quadros com outros personagens que à despeito do nome da série não contavam o personagem que lhe dá nome. Nesses episódios, especialmente nos que participam o Dr. Chapatin, que é um velhinho que anda com um saco de papel na mão, aparecem organizações criminosas. Essas organizações criminosas protagonizam as cenas mais hilárias em que utilizam senhas para disfarçar seus maus atos. Na mais repetida dessas senhas os personagens usam duas falas, uma senha e uma contra-senha, para identificar os membros da organização. Quando um diz “Reintegro” o outro deve responder “Patas de Galinha. é sempre nessas horas que aparece o Dr. Chapatin e seu saquinho de papel para ser confundido com o portador do contrabando, sempre protagonizando cenas muito sem noção. A série Chapolin é criação do mexicano Roberto Bolaños, que também interpreta tanto o herói Chapolin quanto Dr. Chapatin.
Numa outra cena, da qual eu ri alto, contrabandistas estão sentados em volta de uma mesa ensinando ao novato as senhas para as batidas na porta. Eles mostram batendo no tampo da mesa com os nós dos dedos as sequencias de batidas ritmadas e o que elas querem dizer para os que estão do outro lado da porta. Não há descrição que faça jus àquilo, deixo-lhes com o link para o Youtube.
Assim como os investigadores de Ensaio sobre a Lucidez, os bandidos de Cães de Aluguel tinham codinomes para evitar ou pelo menos dificultar sua identificação. Essa é uma obra do genial Quentin Tarantino, que nessa obra foi o diretor, escritor e ainda atuou como Mr. Brown.
Seis bandidos experientes são contratados para um roubo de diamantes. Eles não se conhecem e não devem saber seus nomes reais, essas medidas supostamente garantiriam a segurança da empreitada. O espectador acompanhará o antes e o depois desse malfadado roubo praticado por Mr. White (Harvey Keitel); Mr. Orange (Tim Roth); Mr. Blonde (Michael Madsen); Mr. Pink (Steve Buscemi), Mr. Blue (Edward Bunker) e Mr. Brown.
Assim como em Ensaio sobre a Lucidez, o controle da situação vai ser perdido espetacularmente. E a despeito da violência característica da produção de Tarantino sua outra marca que é o humor e a ironia também são bastante explorados. Estamos falando de trabalhos autorais de criadores com personalidade indelével, prontamente reconhecidas. Tarantino tem além da violência e do humor, os diálogos rápidos e as trilhas sonoras fenomenais. E Saramago tem a linguagem e a pontuação bem peculiares, o a ironia e a premissa. Pelo menos até então, dos livros que li, o autor parte de uma premissa que subverte a ordem natural das coisas e passa a imaginar a reação do mundo caso aquilo acontecesse. é o famoso “e se…?.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
MEIRELES, Fernando. Ensaio sobre a Cegueira. Brasil, EUA, Canadá, Japão, UK & Itália: Miramax Filmes, 2008.
BOLAÑOS, Roberto. Chapolin. México: Televisa, 1973-1979.
TARANTINO, Quentin. Cães de Aluguel. EUA: Miramax Filmes, 1992.
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