Alerta de gatilho!!! Se você não está bem, melhor passar longe desse livro. Talvez ele nunca seja para você.

A Redoma de Vidro

“Eu odiava aquelas visitas.

Estava sentada na saleta de leitura ou no meu quarto uma enfermeira sorridente aparecia e anunciava a chegada de um visitante. Uma vez trouxeram até um pastor da igreja unitária, de quem nunca gostei. Ele passou o tempo todo muito nervoso e deu pra ver que ele me achou louca de pedra, porque eu disse que acreditava no inferno e que pessoas como eu tinham que viver no inferno antes de morrer para compensar o fato de que não iriam para lá depois, já que não acreditavam em vida após a morte e que depois que a gente morria acontecia exatamente aquilo que a gente acreditava.

Eu odiava aquelas visitas porque sentia que elas ficavam comparando minha obesidade e meu cabelo seco com aquilo que eu havia sido e com aquilo que elas queriam que eu fosse, e eu sabia que saiam de lá completamente desconsertadas.

Achei que se me deixassem sozinha poderia ter alguma paz.

Minha mãe era a pior. Ela nunca me censurava, mas ficava implorando com uma expressão de sofrimento, que eu dissesse o que que ela tinha feito de errado. Dizia que sabia que os médicos achavam que ela tinha feito alguma besteira, porque ficavam enchendo-a de perguntas sobre quando parei de usar fraldas, sendo que eu tinha sido perfeitamente educada e nunca lhe dera trabalho nenhum.”

PLATH, Sylvia. A Redoma de Vidro.p.227.

Sylvia Plath morreu antes de ver seu trabalho reconhecido. Praticamente toda sua obra de poetisa, contista e romancista foi publicada depois de sua morte. Inclusive diários escritos entre 1950 e 1962, sob o qual imperou o controle editorial do ex-marido, boy lixo e também escritor Ted Hughes. Esse senhor destruiu alguns cadernos e manteve outros dois trancados em sua gaveta de 1963 até a década de 90 quando ele estava prestes a falecer.

Sylvia Plath tirou a própria vida em fevereiro de 1963.

A Redoma de vidro é o único romance de Sylvia. É uma ficção autobiográfica. A personagem principal se chama Esther Greenwood. O livro se passa em 1953 e fala de uma garota genial, sempre a melhor aluna, a que rapa todos os concursos de escrita, tem uma bolsa ótima em uma universidade e que foi escolhida para um estágio de um mês em uma revista de moda de Nova York.

Bem, Sylvia sempre foi aluna brilhante, fez faculdade em Boston, estágio na Seventeen Magazine no ano de 1953… e por aí vai.

Sylvia Plath

Ela mesma disse que as questões de conflitos sobre o papel da mulher na sociedade são ficcionais, mas que o resto ela passou por tudo.

É um livro muito gostoso de ler. Apesar dos temas sensíveis a escrita dela é a coisa mais linda. Entrou para a lista seleta de favoritos.

O leitor vai acompanhar a deterioração mental de uma garota entre seus 19 e 20 anos, que está passando por um momento de depressão severa. De cara dá para perceber que ela não está bem, mas é devagar e bem construído que acompanhamos o agravamento da depressão. O limite que separa o dia em que as coisas estavam sob controle para o dia que degringolou é tênue.

Primeiro quero dizer que achei Esther muito parecida comigo. Não que eu esteja deprimida, porque não estou. Estou falando de gostos, percepções de mundo e hábitos. Ela ficava ansiosa ou triste e desatava a comer, lia livros de ficção e escrevia coisas de seu interesse pessoal durante as aulas de outras matérias e era relativamente paranóica. Nesse ponto da paranóia, sou bem menos que ela, mas reconheço minha porção. Tem diversos outros pontos que não posso citar para não dar spoilers.

Assim como Garota Interrompida, de Susanna Kaysen, é uma obra que fala de saúde mental e de hospital psiquiátrico. Ou seja, problemas sérios, tensos e cercados de tabus. Outro ponto em comum entre essas duas obras é a ironia. O leitor vai inclusive rir de (ou com) Esther diversas vezes.

Um dos aspectos celebrados do livro é que Esther é uma jovem bonita e promissora que se recusa a enquadrar no perfil de mulher imposto na década de 1950. Ela é bem direta com o pretendente sobre não ter vontade de se casar, nem ter filhos, nem parar de trabalhar e por aí vai. Esther é uma pessoa que busca experiências e sensações. Em parte, para descobrir o mundo, considerando que é uma garota de 19 anos solta e com um salário legal em Nova York, e em parte para preencher um vazio.

Uma das vezes que Esther decide fazer alguma coisa “transgressora” como forma de impor seus desejos e se firmar como indivíduo no mundo é quando ela resolve que precisa deixar de ser virgem. Foram três opções, sendo Eric a segunda. Eric teve sua iniciação sexual com uma prostituta que deixou traumas e distorceu a opinião dele sobre esse tema. Em seu entendimento, o sexo era uma coisa suja, animalesca. Ele pretendia se casar e não ter relações sexuais com sua esposa, posto que gostaria de privar a pessoa que ele escolheu para amar daquela “imundice”.

Ele é um personagem interessante, que aparece pouco no livro. Na medida, para ajudar o leitor a entender que tipo de parceiros Esther considerava  atraentes e seus critérios.

Eric me lembrou muito Trey MacDougal, personagem da terceira temporada de  Sex and The City, interpretado por Kyle MacLachlan. Charlote York é a amiga casadoura de Carrie Bradshaw. A Susanita. Embora Sex and the City seja ambientado nos anos 2000, Charlotte seria a perfeita mulher dos anos 1950, com idealizações românticas bem irreais, ingênuas, engolfada pelo machismo estrutural. Trey é um charmoso descendente de família tradicional escocesa e rica. Charlotte também é rica, só p esclarecer que Trey ser rico era importante para ela, mas não se trata de resolver sua vida financeira por meio do casamento é mais uma “vibe” puro sangue, uma família tradicional se unindo a outra, formar um “it couple” da alta sociedade nova-iorquina.

Mesmo com uma vida sexual pregressa ativa, Trey e Charlotte não tiveram relações antes do casamento, porque concordaram em se guardar. Para eles, a vida sexual só viria depois do casamento. Será?

Charlotte York e Trey MacDougal

Embora não tenham consumado o ato sexual antes do matrimônio, o casal era bastante fogoso e Trey parecia promissor para Charlotte nesse sentido, mas… depois que se casaram ele confessou que tinha um bloqueio psicológico e que não conseguiria ter relações com ela porque agora ela era uma mulher “sagrada”. Assim como Eric, Trey entendia que o sexo não poderia ser com a esposa, que por ser amada deveria ficar longe dessas “imundices”. Trey não elaborava o pensamento assim, era muito travado psicologicamente até para conseguir formular esse tipo de conclusão. Além disso, outra diferença entre eles é que Eric teve o trauma da primeira vez no prostíbulo e o trauma de Trey vinha de sua relação doentia com a mãe (pensa numa escocesa sisuda e controladora: Bunny MacDougal).

Uma música que pode ajudar a entender o estado de paranoia em que se encontra Esther é Para Nóia, de Raul Seixas. A letra é um dedo no ouvido para Esther. Descreve o grau de cisma dela com perfeição:

Quando esqueço a hora de dormir/E de repente chega o amanhecer/Sinto a culpa que eu não sei de que/Pergunto o que que eu fiz? Meu coração não diz e eu…Eu sinto medo!/ Se eu vejo um papel qualquer no chão/ Tremo, corro e apanho pra esconder/ Com medo de ter sido uma anotação que eu fiz/ Que não se possa ler/ E eu gosto de escrever, mas…Mas eu sinto medo!/ Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro /Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre…sempre… sempre…/ Eu estava com Deus!/Eu tava sempre com Deus!/ Minha mãe me disse há tempo atrás/ Onde você for Deus vai atrás/ Deus vê sempre tudo que cê faz/ Mas eu não via Deus/ Achava assombração, mas…Mas eu tinha medo!(…)”

Essa parte da música que fala do medo da vigilância de Deus, que é aquela tal culpa cristã que acompanha pessoas devotadas a religiões cristãs em geral, encontra eco, por exemplo,  no trecho do livro em que ela retorna para a clínica psiquiátrica com suas compras (não vou dizer o que tinha na caixa!) :

“ Voltei para a clínica com uma caixinha embrulhada em papel pardo no colo, como a Sra. Fulana voltando de um dia na cidade como um bolo para a tia solteirona ou um chapéu da Filene’s Basement. Aos poucos, minha suspeita de que católicos tinham visão de raio X diminuiu, e fiquei mais à vontade. Eu tinha aproveitado bem meu dia de compras. Eu era dona de mim mesma.” (p.250)

Garota, Interrompida

Embora semelhantes e excelentes, Garota Interrompida e A Redoma de Vidro cumprem propostas distintas. Enquanto Kaysen questiona a psiquiatria, seus conceitos e tratamentos, Plath vai dar a dimensão interior de uma pessoa em depressão. Lembrando que o diagnóstico de Susanna era personalidade borderline. Uma curiosidade é que Susanna, que conta a história dela mesmo sem nem mudar o nome da personagem principal, menciona alguns famosos que tinham frequentado aquela clínica em que estava. Entre essas personalidades estava Sylvia Plath:

“O mais famoso de todos os ex-pacientes era Ray Charles. Vivíamos esperando que ele voltasse e fizesse serenatas da janela do pavilhão de recuperação de drogados. Ele nunca voltou.

Contudo tínhamos a família  Taylor: Kate e Livingston estavam lá, embora James tivesse sido promovido para outro hospital antes da minha chegada. Na falta de Ray Charles, seus blues com sotaque da Carolina do Norte eram o bastante para nos entristecer. Os tristes precisam ouvir o som de sua tristeza.

Robert Lowell também não passou por ali durante minha estada. Sylvia Plath chegara e partira.”(KAYSEN.p.59.)

O termo redoma de vidro é perfeito para descrever o que Plath pretende passar como estado mental de Esther. É como se ela tivesse envolvida por uma redoma de vidro para quem chegam abafados barulhos de fora, ela percebe algo acontecendo em sua volta, mas não toma parte. Aquilo simplesmente não a afeta e ela tem que conviver somente com ela e seus pensamentos sejam eles os pensamentos que forem. Da mesma forma que não há possibilidade de se envolver e tomar parte do que ocorre dentro da redoma de vidro, o que está fora também interfere muito pouco ou nada no ambiente interior. A pessoa vai se distanciando e se fechando em um mundinho interior distorcido.

Enfim, está se sentindo bem psicologicamente? Leia A Redoma de Vidro. É praticamente perfeito esse livro.