Johnny Vai à Guerra

“E isso não era tudo. Havia um lugar no sul da França onde eles mantinham os loucos. Havia sujeitos que não conseguiam falar mesmo estando em perfeitas condições físicas. Simplesmente tinham ficado apavorados e esquecido como se falava. Eram homens de corpos saudáveis que andavam de quatro e enfiavam a cabeça em algum canto quando estavam aterrorizados e farejavam uns aos outros e erguiam as pernas como cães e não faziam nada senão choramingar. Havia um sujeito um mineiro de carvão que voltou para sua esposa e seus três filhos em Cardiff. Seu rosto tinha sido queimado por uma labareda uma noite e quando sua esposa o viu soltou um grito estridente e pegou uma machadinha e decepou a cabeça dele e em seguida matou os três filhos. Foi encontrada na mesma noite bebendo cerveja muito tranquilamente num bar. O único problema é que ela estava tentando comer o copo em que a cerveja estava. Como era possível acreditar ou deixar de acreditar em qualquer coisa? (…)

Mas não havia muitos como ele. Não havia muitos sujeitos que os médicos pudessem apontar e dizer eis aqui a última palavra eis aqui nosso triunfo eis aqui a coisa mais grandiosa que fizemos e olha que fizemos muitíssimas. Eis aqui um homem sem pernas nem braços nem orelhas nem olhos nem nariz nem boca mas que respira e come e está tão vivo quanto você e eu.”

TRUMBO, Dalton. Johnny Vai à Guerra. p.89.

 

Joe, o personagem principal de Johnny Vai à Guerra de Dalton Trumbo, é um jovem americano que foi convocado a lutar pelos EUA na Primeira Guerra Mundial (1ª GM).

Lembremos que a 1ª GM teve muitas inovações bélicas e estratégicas em relação às guerras anteriores, sendo a guerra mais letal até então. Algumas particularidades desse evento foram as trincheiras, o uso de submarinos e o de aeronaves.

Essa guerra foi considerada mundial porque os combates acabaram se estendendo para além da Europa, se desdobrando em muitos conflitos envolvendo as colônias, territórios e zonas de influência dos países europeus envolvidos, principalmente na Ásia e na África.

Como se essa grande treta envolvendo três continentes já não fosse suficiente, com o objetivo de impedir que os Estados Unidos continuassem abastecendo a França e a Inglaterra com os mais diversos bens de consumo ou armamentos, submarinos alemães torpedearam navios estadunidenses causando prejuízo àquele poderoso aliado da Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia).

Dalton Trumbo

A causa da entrada dos EUA na 1ª GM importa demais para essa obra de ficção porque algo muito forte em Johnny Vai à Guerra é a falta de conexão do soldado com a causa. A real intenção dos EUA em participar da 1ª GM era tão somente econômica. Já a justificativa para a formação de tropas se fiava em conceitos abstratos como defesa da democracia e da liberdade. Em diversos pontos do livro, Joe vai refletir acerca da abstração da motivação e de como ele não achava justo interromper juventudes em nome do intangível.

As estimativas de mortos e feridos da  1ª GM variam um pouco, então vamos pela média: 10 milhões de vítimas fatais e outros 20 milhões de feridos. Foram 70 milhões de soldados. Não encontramos números confiáveis para soldados considerados inválidos por questões mentais por causa de sua participação no conflito.

Uma coisa que tem demais nesse livro é reflexão.

“Ah, mas todo personagem principal faz reflexões uma hora ou outra em qualquer livro.” Isso é Verdade. Só que nesse caso é ainda mais importante, porque ele não pode fazer mais nada além de exercitar a mente, seja refletindo sobre o mundo, reinventando propósitos para si próprio ou rememorando o passado. Isso porque ele não tem mais nada. Quando digo nada, quero dizer exatamente isso: nada.

Ele foi atingido em cheio por uma bomba lançada contra a trincheira em que estava e perdeu simplesmente os braços, pernas, olhos, boca, nariz e orelhas. Ele virou um cérebro que nem mesmo consegue comunicar seus pensamentos para outras pessoas.

Uma pergunta válida, a partir da informação do parágrafo anterior, seria: “como é possível construir trama usando esse personagem?”.

Acreditem. Foi possível e é genial.

Não há vírgulas no texto. O que ao invés de atrapalhar a leitura deu velocidade. Como uma forma de aproximar a leitura da agilidade do pensamento.

O leitor estará o tempo todo na cabeça dele. A técnica mescla monólogo interior a narrações em flashback, nas quais há participação ativa de outros personagens. E isso é tão rico e bem urdido que o livro, protagonizado por um personagem incapaz de executar as mais simples ações, ficou dinâmico na medida para prender o leitor.

Fachada do Imperial War Museum, Londres/UK

O Imperial War Museum, em Londres/UK, tem em seu acervo permanente uma simulação de trincheira. Ela dá ao visitante uma noção do que era estar em uma dessas aberturas no solo, na qual soldados de ambos os lados do combate passavam semanas às vezes meses. Até o cheiro e os barulhos eles replicaram.

Só para dar uma ideia da desgraça que era ficar enfiado em uma trincheira, elas eram repletas de ratos, atraídos pela imundice, cadáveres e matéria orgânica diversa. Esses roedores muitas vezes se alimentaram de partes de orelhas e narizes de soldados dormindo.

No livro, A Garota Dinamarquesa, recentemente resenhado aqui, a personagem Lili Elbe passa por várias cirurgias de redesignação de gênero, executadas por um médico muito experiente em remoção e reconstituição de órgãos em humanos. Lili Elbe foi operada entre os anos de 1930 e 1931 e a experiência desse médico foi justamente a abundante matéria prima oferecida por meio dos mutilados e feridos da 1ª GM. Pessoas como o personagem Joe foram o que geraram o conhecimento e confiança indispensáveis para que médicos como o Dr. Bolk, performasse com sucesso cirurgias complicadas e pioneiras no pós-guerra. Esses avanços da medicina a partir de procedimentos tentados à exaustão em feridos de guerra entre 1914 e 1919 é outro ponto que perpassa a mente de Joe.

Sobre personagens que perderam membros e passaram dificuldades por isso e ainda para quebrar o clima de tenso do assunto desse texto, temos a esquete de comédia “O caso de Joseph Climber” criado e interpretado pelo grupo brasiliense de teatro Os Melhores do Mundo. Dessa esquete participam apenas dois atores: um interpreta Joseph Climber e o outro é um narrador/palestrante motivacional. Joseph que era um atleta de 17 anos vai perder uma a uma suas habilidades físicas e termina como peso de papel.

Plebe Rude

Interrompemos as referências a personagens que perderam funções e/ou membros de seus corpos para comentar que a banda, também brasiliense, Plebe Rude tem músicas inspiradas tanto em Joseph Climber (e esse é o nome da canção) quanto em Joe. Essa segunda se chama Johnny Vai à Guerra (outra vez).

Uma das maiores obsessões de Joe ao longo das 231 páginas do livro é conseguir se comunicar. E um dos filmes mais lindos do mundo, na opinião desta pessoa que vos escreve, é O Escafandro e a Borboleta que trata de uma pessoa que também estava aprisionada em seu próprio corpo, mas com, pelo menos, duas vantagens em relação a Joe: ele tinha um olho que funcionava e uma pessoa empenhada em se comunicar com ele.

O Escafandro e a Borboleta é a história real do jornalista Jean-Dominique Bauby, que é também o autor do livro homônimo que originou o filme.

Como? Como uma pessoa pode escrever um livro se o único movimento que ele consegue fazer é com a pálpebra do olho direito?

Aí é que está o incrível. Ele ditou para a profissional que o auxiliava (médica, psicóloga ou fonoaudióloga, não tenho certeza da especialidade dela). Essa mulher ia ditando as letras do alfabeto e ele piscava quando chegava à letra desejada. Dessa forma ele criou e ela registrou em livro a autobiografia de seu paciente. Só de escrever sobre isso já dá vontade de chorar. E é para chorar baldes. Lindo demais.

Não li o livro. Ouvi dizer que o filme é mais completo, porque tem passagens vividas por personagens que rodeavam Jean e que não estão no livro. O esquema do roteiro é bem parecido com a construção de Johnny Vai à Guerra. Vamos adentrar a cabeça do personagem e acompanhar reflexões, memórias, adaptação e conquistas.

Sabe quem mais conseguiu escrever livros com movimentos corporais quase inexistentes? Stephen Hawking. Como vantagem em relação ao personagem ficcional Joe e ainda sobre a condição do personagem real Jean-Dominique Bauby, Hawking podia fazer leves movimentos com a mão, e é claro: tinha um cérebro com capacidade acima da média. Quando escreveu o livro best-seller Uma Breve História do Tempo (1984), ele ainda teve voz para ditar a uma secretária. Depois de uma pneumonia que levou a uma traqueostomia, teve que adaptar um software para escolher palavras de um menu usando poucos e leves toques da mão. Posteriormente, conseguiu juntar a esse software um sintetizador de voz, com o qual Stephen se comunicou até seu falecimento em 2018.

Nem a solução de Jean nem a de Stephen teriam servido para Joe. Para saber se Joe conseguiu se comunicar vai ter que ler Johnny Vai à Guerra.

Johnny Vai à Guerra foi adaptado para o cinema em 1971, lançado em plena guerra do Vietnã (1959 a 1975). Está disponível na íntegra com legendas em português no Youtube.

Dalton Trumbo nasceu em 1905 e faleceu em 1976. Escreveu Johnny Vai à Guerra em 1938 e publicou em 1939, dois dias depois do início da Segunda Guerra Mundial. Pense num autor que foi criticado por estar fazendo propaganda anti-guerra em tempos de nazi-fascismo.

Aliás, esse era um homem que tinha ideias sólidas e que não se curvava aos desejos da opinião pública. Ele era um comunista declarado, que foi boicotado pelo Macarthismo, indo parar na infame “Lista Negra”. Dalton Trumbo teve que recorrer ao que ficou conhecido como “testa de ferro” para que pudesse continuar sobrevivendo de escrita durante um longo período da Guerra Fria. Essa prática consistia em fazer o trabalho e dar a outra pessoa para assumir a autoria, para que passasse pelo controle do governo. Nesse sistema ele foi responsável por roteiros de filmes como Spartacus, Papillon e Exodus, todos sucesso de bilheteria, clássicos do cinema estadunidense.

Dica bônus: essa história de Trumbo x os Estados Unidos virou um filme bem legal, chamado Trumbo – Lista Negra (2015).

 

TRUMBO, Dalton. Johnny Vai à Guerra. Tradução: COUTO, José Geraldo. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2017.

EBERSHOFF, David. A Garota Dinamarquesa. Tradução: REIS, Paulo reis. Rio de Janeiro: Fabrica 231, 2011.

TRUMBO, Dalton. Johnny Vai à Guerra. EUA: Shout Factory, 1971.

SCHANABEL, Julian. O escafandro e a borboleta. EUA & frança: Pathé, 2007.

ROACH, Jay. Trumbo – Lista Negra. EUA: Bleeker Street, 2015.