A Cachorra

“Agora beirava os quarenta, a idade em que as mulheres secam, como ouvira dizer uma vez por seu tio Eliécer. Não fazia muito tempo, no dia em que Damaris adotou a cachorra, Luzmila tinha feito um alisamento em seu cabelo, enquanto passava o produto nela, admirou sua pele, que se mantinha muito bem, sem manchas nem rugas.

– Já eu, olhe para mim – disse e, como que explicando, acrescentou: – Claro, você não teve filhos.

Nesse dia Luzmila estava de bom humor e só quisera fazer um elogio, mas em Damaris doeu até a medula perceber que ela, e certamente o mundo inteiro, davam seu caso como perdido, e estava mesmo perdido, ela sabia disso, mas era difícil aceitar.

De modo que esse novo comentário de sua prima, que aos trinta e sete tinha duas filhas e duas netas, lhe deu vontade de fazer um dramalhão, como nas novelas, e dizer, com lágrimas nos olhos, para que se arrependesse de sua maldade: “Sim, escolhi o nome Chirli, como a filha que nunca tive.” Mas não fez nenhum dramalhão nem disse nada. Levou a cachorra para a caixa e perguntou à prima se naquela semana tinha falado com seu pai, o seu tio Eliécer, que morava no Sul e ultimamente não se sentia bem de saúde.”

QUINTANA, Pilar. A Cachorra. p.29.

 

Pilar Quintana, escritora colombiana, publicou em 2017 a obra La Perra e em 2020 a editora Intrínseca, que aliás tem publicado coisas interessantes e diferentes, traduziu e lançou no Brasil com o nome de A Cachorra.

Esse livro, que é meio um thriller, vai contar a história de Damaris, uma mulher nascida no litoral da Colômbia em uma cidade muito pequena, porém turística. A questão principal do livro é a incapacidade de Damaris para gerar filhos biológicos, mas até que se chegue a essa conclusão, o leitor vai acompanhar a construção dessa personagem cheia de nuances, que foi criada em um lar violento, passou pelo trauma de ver seu melhor amigo morrer afogado e ser culpada pelo ocorrido, casou-se com um homem soturno, mas que a amava, suas questões com as primas, sobretudo Luzmila que era bastante crítica e desdenhosa, mas também companheira em muitas horas, a luta para engravidar. Até o momento em que ela adota uma cachorra, a qual batizou de Chirli em homenagem a Shirley Sáenz, que havia sido objeto de admiração dela e de Luzmila quando foi coroada miss Colômbia em 1977.

Shirley Saénz

E então ela vai dar à Chirli todo amor que guardou para o filho que nunca teve e vai esperar do animal o comportamento de um humano consciente do bom tratamento a ele dedicado e gratidão.

Camadas e mais camadas. A Cachorra não é raso nem simples. Vários sentimentos depreciativos e tristes são explorados pelo narrador em terceira pessoa que narra a história pela perspectiva de Damaris. E são sentimentos universais. Não é preciso ter nascido em condições econômicas desfavoráveis no litoral da Colômbia para passar pelos dramas que aquelas pessoas vivenciam.

Uma característica da dinâmica social entre os personagens do livro é a falta de diálogo. Para tornar perceptível o silêncio que envolvia aquelas relações sem precisar subestimar a inteligência do leitor, Pilar Quintana construiu um texto de bastante narração e pouco diálogo. Muita descrição do que se passa na cabeça de Damaris e as poucas frases de interação entre ela e os demais personagens, mostram uma incapacidade intelectual e emocional que tornaram aquelas vidas embrutecidas. A personagem que parece mais extrovertida é Luzmila, que fala muiro e de forma desagradável.

Claro que essa dificuldade de dialogar foi condição para que Damaris construísse um universo interior e uma carapaça impenetrável, assim como todos os outros construíram as suas. Porém, esse casulo que esconde ou tenta esconder os sentimentos de raiva, revolta, tristeza e esperança que exporiam a vulnerabilidade de Damaris perante os demais trouxe à memória um livro que também tratou de questões de infertilidade feminina com outro pano de fundo e outros mecanismos de comunicação, mas as mesmas questões: Todas as Suas (im)Perfeições, de Colleen Hoover, um best seller do gênero Young Adult (YA).

Leio muito pouco YA. Muito pouco mesmo. Normalmente, depois de ter terminado o livro, concluo que poderia ter feito coisa melhor com aquele tempo, por outro lado, compreendo quem curte esse tipo de literatura. Eles têm final feliz, linguagem fácil de compreender, personagens idealizados e tal.

Todas as suas (im)perfeições

Da Colleen Hoover eu li dois. Fiquei curiosa para saber por que ela era tão famosa. Apesar de não querer ler de novo, devo admitir que devorei. Tenho por Colleen o mesmo conceito que tenho de Dan Brown: é bom para passar o tempo e tem aqueles cliffhangers que a gente quer virar a página (umas reviravoltas bem ganchosas), mesmo sabendo no primeiro capítulo, que provavelmente o final não vai te arrebatar. Parecem ser escritos para ser não só best sellers como também block busters. Essas histórias são praticamente roteirizadas para cinema.

Não me arrependi de ler. Provavelmente lerei outros livros com esse nível de dificuldade quando minha cabeça estiver cansada de pensar ou simplesmente quando quiser uma coisa coração quentinho.

Por que gostei de Todas as Suas (im)Perfeições? Pelo que percebi de Colleen Hoover, o final vai ser fofinho, mas o meio das tramas vai ter um tema polêmico que envolva o universo e os sentimentos femininos mais profundos. Certeza de encontrar pelo menos um bulling casca grossa ou violência doméstica, casamento mal trabalhado nível hard, mas no final vai dar tudo certo para a mocinha. Uma outra razão que motiva a leitura de romances com construção linguística e formal mais direta é a facilidade de ler no original e treinar a leitura em outras línguas, especialmente o inglês. Fica a dica. Na verdade, o livro que eu li foi “All Your Perfects” (não concordo com o prefixo “im” antes da palavra perfeiçoes do título da tradução).

Em Todas as suas (im)Perfeições os personagens principais são Quinn e Graham. Eles se conhecem na porta do apartamento de Ethan, então noivo de Quinn. Graham não é amigo de Ethan e mesmo assim está plantado do lado de fora como quem está esperando o morador. Então, Quinn chega de viagem antes do tempo previsto, vai de surpresa para a casa do noivo e dá de cara com esse homem do lado de fora, dizendo a ela que lá dentro está sua namorada Sasha tendo um caso com Ethan. É uma cena bem humorada, irônica, apesar do contexto desconfortável para os personagens.

Pronto. É nesse contexto que Quinn decide por fim ao seu noivado que viraria casamento dali a algumas semanas e se interessa por Graham. Eles vão se apaixonar, se casar e ter muitos problemas para ter filhos, que é o grande sonho de Quinn. Nessa busca, eles se endividarão com tratamentos caros, terão negados pedidos de adoção, verão seus sobrinhos nascerem e a cada passo e cada porta na cara um pedaço deles vai apagando.

Até a parte em que Quinn vai para a França o livro é muito bom. Depois me perdeu. Deu uma desandada feia. Talvez seja culpa de uma tendência a apreciar (e preferir) leitura desgraceira.

Todas as suas (im)perfeições se parece com A Cachorra na construção do sofrimento de Damaris e de Quinn em relação à infertilidade. Um vislumbre disso é que ambas vão passar a evitar os maridos que as amam e a quem elas também amam porque a cada relação sexual nasce também a esperança de que tenham gerado um bebê e, quando chega a constatação de que ainda não foi dessa vez, a dor sentimental é tão intensa que elas preferem não mais passar por esses momentos de intimidade conjugal para não passar pela desilusão que virá na sequência. Olha que coisa mais triste! Meo Deos!

Quinn e Graham também vão se distanciando, parando de conversar e a construção desse período de descosturar o amor e o casamento é torturante de ler.

Passemos a outro aspecto do livro A Cachorra, tão importante ou mais (até porque é o motivo do título) que é a fase em que Damaris adota Chirli. A relação entre as duas e a de Rogélio com Damaris sobre a questão mãe de pet é muito interessante. Nem sempre doída. Vai degringolando aos poucos.

Depois do primeiro cio, Chirli muda o comportamento. E Damaris não absorve aquilo muito bem. Não entrarei em detalhes, embora possa assegurar que são todos sensacionais.

Bao

Outra relação de maternidade representada, com mãe humana lidando com o “filho” não humano, é o curta Bao, que levou o Oscar de melhor curta de animação de 2019 e está disponível no Disney Plus.

Uma senhora faz bolinhos salgados recheados típicos da culinária chinesa chamados Bao. Pelo que entendi, ela e o marido não tem mais uma relação aconchegante, assim como a de Damaris e Rogélio.

Nesse dia, depois que o esposo sai para o trabalho ela destampa a panela e percebe que um dos bolinhos ganhou vida. Então ela passa a cuidar daquele Bao como se fosse seu filho. Ele preenche o vazio da vida dela e ela se dedica com muito amor àquela criaturinha, que vai crescer, se tornar adolescente, se casar e sair de casa.

Nesse ponto em que Bao quer formar um novo lar com sua namorada, a mãe terá uma reação inesperada.

Cena de Bao

Tanto Bao quanto A Cachorra trarão reflexões sobre maternidade, amor, cuidado, dedicação e, por outro lado, deixar os filhos fazerem suas próprias escolhas, calibrar as próprias expectativas para não esperar dos filhos comportamentos idealizados.

Recomendo para a personagem Damaris e para a mãe de Bao a leitura do livro Sidarta, de Herman Hesse, que tem um texto aqui nesse blog.

 

QUINTANA, Pilar. A Cachorra. Tradução: DEORSOLA, Livia. Rio de Janeiro: Intrínseca

SHI, Domee. Bao. EUA: Pixar & Walt Disney Pictures, 2018.

HOOVER, Colleen. All Your Perfects. EUA: Atria Books, 2018. (no Brasil sai pela editora Galera)