
A Ilha do Dr. Moreau
“Olhei seu rosto sem fazer menção de responder. Ele virou-se e caminhou para a porta, olhando-me de maneira esquisita por sobre o ombro.
Segui-o com os olhos, e nesse instante, por algum truque do pensamento inconsciente, brotou na minha mente uma frase — “Os amores de Moreau”?… — seria isto?… Ah! Logo minha memória deu um salto de dez anos no passado. “Os horrores de Moreau.” A frase pairou em minha lembrança até me trazer de volta a imagem de um panfleto impresso em letras vermelhas, um impresso cuja leitura era de arrepiar os cabelos e provocar calafrios. Lembrei-me distintamente daquele texto impresso. Eu era apenas um rapaz, e Moreau devia ser, pelo que me recordo, um homem de seus cinquenta anos, um fisiologista famoso e de enorme talento, muito conhecido nos círculos científicos por sua imaginação extraordinária e o modo radical como defendia suas ideias.
Seria o mesmo Moreau? Ele tinha publicado várias obras sobre o tema da transfusão de sangue, e além disso estava realizando um trabalho importante sobre os tumores. E de repente sua carreira foi interrompida. Teve que deixar a Inglaterra. Um repórter havia obtido acesso ao seu laboratório oferecendo-se como assistente de pesquisa, com a intenção deliberada de fazer uma matéria sensacionalista; ajudado por um acidente fortuito (se é que foi mesmo um acidente), o panfleto que publicou tornou-se famoso de imediato. No dia de sua publicação, um cachorro esfolado e mutilado escapou da casa de Moreau.
Era naquela época de recesso de verão, em que os jornais estão sem assunto, e um editor importante, primo do falso assistente, ergueu brados de apelo consciência para criticar métodos de pesquisa científica. O médico foi praticamente expulso do país. Talvez o merecesse; mas eu não pude deixar de considerar vergonhosa a maneira como seus colegas cientistas lhe prestaram um
apoio vacilante, e como o mundo científico deu-lhe as costas. Ainda assim, algumas das suas experiências, a julgar pelo relato do jornalista, eram desnecessariamente cruéis. Talvez ele pudesse ter feito as pazes com a sociedade caso abandonasse essa linha de trabalho, mas ele preferiu continuar dedicando-se a ela, como o faz a maioria dos homens que se deixam enfeitiçar pelo apelo
poderoso da pesquisa científica. Era um homem solteiro, e não tinha que levar em conta nenhum outro interesse a não ser o seu próprio.”
WELLS, H. G. A Ilha do Dr. Moreau.
Quando eu tinha uns 14 anos, assisti ao filme A Ilha do Dr. Moreau e aquilo ficou pra sempre na minha cabeça. Era um filme bizarro.
Aí depois de muito tempo descobri que era um livro clássico da literatura de ficção científica, escrito por H.G. Wells em 1896, mas só recentemente dei uma chance para ele.
Um homem de meia idade sofre um acidente naval e vai parar em um escaler com outros três homens. Ele acaba sendo o único sobrevivente, resgatado por uma embarcação que levava animais selvagens e coelhos para uma ilha.
Já na embarcação que o resgatou ele começa a estranhar a aparência de alguns tripulantes. Outro ponto é que o capitão está muito incomodado com a presença daquelas pessoas e dos animais a bordo. Ele não era o dono dos animais, era simplesmente um frete.
Os personagens principais são: Prendick, o náufrago resgatado; Dr. Moreau, cientista renomado que vive isolado em uma ilha e Montgomery, um homem com problemas com alcoolismo que é uma espécie de assistente do Dr. Moreau.
O babado é que Moreau tinha sido um cientista muito conceituado e inovador, posteriormente banido da comunidade científica por realizar experiências antiéticas com vivissecções. Após o banimento, Moreau desaparece, sumindo do radar da sociedade inglesa. Desapareceu.
Eis que suas experiências macabras continuaram, sem controle nenhum de pares ou de comissões de ética, em uma ilha até então desconhecida.
Prendick, por sua vez, havia se graduado biólogo na mesma instituição em que Moreau lecionava antes do banimento e talvez por isso tenha sido poupado por seu anfitrião e permanecido na ilha.
Que tenso! É muito tenso mesmo. Quando a gente vai entendendo que tipo de experimentos são praticados ali e em que condições, a relação entre os habitantes da ilha, o dia a dia na ilha, os motivos de Moreau, os medos, as consequências.
Eletrizante. É meu segundo livro de H.G. Wells, o primeiro foi O Homem Invisível, que também é ficção científica questionadora da ética, dos limites e dos efeitos da vaidade sobre homens notáveis.
Recomendo os dois, ambos são livros pequenos e agoniantes. A Ilha do Dr. Moreau é melhor. Bem mais tenso e bem construído, em minha modesta opinião.
Há uma obra nacional que tem uma vibe parecida, da qual também gostei bastante quando li. Não sei se hoje gostaria tanto, devem ter uns vinte anos que li O sorriso do Lagarto, de João Ubaldo Ribeiro.
É engraçado que a rede Globo produziu uma série sobre O sorriso do Lagarto nos anos 90. Eu não assisti. Mas, me lembro da música da abertura. Enquanto lia A Ilha do Dr. Moreau, e ainda agora enquanto escrevo sobre o livro, minha cabeça fica tocando Mercy Street, de Peter Gabriel. Meu cérebro colocou a trilha sonora de uma série que eu não assisti, no livro que a ensejou e agora ele colou a mesma música em outro livro só porque eles se compartilham essa temática dos limites éticos da ciência.
É isso: para mim Mercy Street é a trilha sonora de A Ilha do Dr. Moreau.

O Sorriso do Lagarto
A trama de O sorriso do Lagarto é mais complexa, inclui romance e variadas mazelas da alma humana, enquanto A Ilha do Dr. Moreau se fixa na questão do abuso científico.
Um biólogo larga a vida acadêmica para se tornar pescador na ilha de Itaparica. Esse homem se apaixona pela esposa de um político e eles vivem uma complexa história de amor. Concomitante, ele descobre experiências científicas antiéticas realizadas na ilha e a história envereda por discussões filosóficas sobre fé, ética científica, evolução… Muita ironia e crítica a costumes e crenças da elite econômica brasileira. Tem muito tempo que li. Estou certa de não estar fazendo jus a esse livro. Deu vontade de ler de novo… quem sabe?
Polêmicas à parte, sempre há uma comoção quando se fala em cobaias animais ou humanas em pesquisa científica. Tudo, para ser autorizado e válido deve ser planejado, justificado, submetido a órgãos de controle, depois consolidado, submetido aos pares, publicado em revistas reconhecidas e ainda assim às vezes dá ruim.
Entramos nesse mérito para dizer que cobaias vivas são muitas vezes fundamentais para o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e outras técnicas farmacológicas ou medicinais. Por si só, não é um problema.
Citaremos dois exemplos em que é impossível negar a importância da pesquisa com animais para se chegar ao resultado que proporciona ganho em qualidade de vida aos humanos: uso de pele suína para transplante de pele e de pele de tilápia para tratamento de queimaduras também na pele.
Toscamente falando, pesquisadores descobriram que os porcos tem pele geneticamente parecida com a pele humana e que seria uma possibilidade usar esse tecido para transplantar pele humana substituindo danos de queimaduras, câncer de pele por exemplo. Não se trata de tirar a pele do animal e simplesmente enxerta-la no organismo humano. Segundo reportagens como a publicada na revista exame em setembro de 2013 a derme suína tem 78% de correspondência genética com a humana e já havia sido usada em transplantes temporários. A artificial usada em transplantes definitivos teria sido desenvolvida pela Química Joana D’Arc Felix de Souza e seus alunos do curso técnico em curtimento da Escola Técnica Estadual de Franca (ETEC), a partir de pesquisas feitas com pele de porco.
“A saída foi eliminar todo o material genético suíno, por meio de um processo de purificação da pele que eliminou gordura, proteínas e as células suínas. Com o material limpo, a etapa seguinte foi preenchê-lo com colágeno de boi, a fim de manter as características estruturais da pele humana”.
A outra pesquisa citada também é nacional e foi a que descobriu o potencial da pele de tilápia para tratar queimaduras de 2º e 3º graus. Esse método foi desenvolvido no Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ) em Fortaleza, capital do Ceará, por um grupo de médicos.
A pele de tilápia passa por um processo de limpeza em que são retirados as escamas, o tecido muscular, as toxinas e o odor característico do peixe. O material cortado e preparado pode ser armazenado entre 2 e 4ºC por até 2 anos.
A vantagem é que pode ficar aplicado à pele queimada por dias sem que seja necessário trocar. Isso é um grande avanço considerando que trocar curativo em pele com queimadura severa é extremamente doloroso.
Segundo reportagem publicada no UOL em junho de 2017, a pele de tilápia é rica em colágeno tipo um e tem bom grau de umidade que ajuda na cicatrização.
Mas, como nem tudo são flores, vamos ao outro polo pensar em como a maldade humana e a falta de ética pode cometer crimes contra supostas cobaias científicas.
Falamos no texto sobre No Caminho de Swann (livro 1 de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust) sobre os horrores de campos de concentração/extermínio nazistas, quando mencionamos a visita a Auschwitz/Birkenau como forma de se alcançar a verdade.
Agora, outras notícias de atrocidades cometidas em nome de uma pseudociência também foram registradas aos montes em Auschwitz e em outro campo de concentração nazista, localizado na cidade de Dachau, que fica nas proximidades Munique na Alemanha.
O campo de concentração de Dachau foi o primeiro deles, construído em 1933, e Auschwitz foi o maior deles.
Tudo o que acontecia nos outros campos de concentração, acontecia também nesses dois: prisioneiros em condições desumanas forçados a trabalhar, extermínio em massa por câmara de gás, fuzilamento, exaustão, fome, doenças… Tudo muito extremo e horrível. Acontece que nesses campos de concentração em particular, o buraco ia ainda mais embaixo. Foram encontrados registros de que seres humanos aprisionados eram submetidos a experiências “científicas” (leia-se tortura em nível máximo de sadismo).

Dachau
Exemplos dessas experiências usando cobaias humanas eram: passar horas seguidas em tanque de água gelada para estudar os efeitos da hipotermia, ser submetido a exposição a gás de mostarda, bombas incendiárias, doenças transmissíveis e até injeção de tinta nos olhos.
Um dos principais nomes da pesquisa sádica nazista foi nosso hospede, vejam só?! Josef Menguele fugiu da condenação por seus crimes na Europa, primeiro indo morar na Argentina, onde praticou medicina com um nome falso, e depois mudou-se para o Brasil onde faleceu. Há relatos da predileção de Menguele por gêmeos, que ele usava como grupo de controle. Muito do que hoje são regras internacionais para condução de pesquisa com cobaias vivas se deve à descoberta dos métodos nazistas, especialmente os desenvolvidos por Josef Menguele.
Se A Ilha do Dr. Moreau é uma história cruel, ela é antes de tudo, já no século XIX, uma crítica à pseudociência e um apelo á ética acadêmica em forma de história de terror.
A Ilha do Dr. Moreau foi adaptada para o cinema duas vezes, uma em 1977 e outra em 1996, as duas versões tomaram suas liberdades em relação ao original, embora devamos creditar à segunda a tentativa de adaptar a trama à técnicas científicas mais modernas, posto já ser de conhecimento que a vivissecção não seria capaz de produzir mutações como as criadas por H.G Wells.
WELLS. H. G. A Ilha do Dr. Moreau. Tradução: BOIDE, Alexandre. São Paulo: L&PM Pocket, 2019.
RIBEIRO, João Ubaldo. O Sorriso do Lagarto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
TAYLOR, Don. A Ilha do Dr. Moreau. EUA: Cinema 77, 1977.
FRANKENHEIMER, John. A Ilha do Dr. Moreau. EUA: New Line Cinema, 1996.
05/08/2023 at 14:50
Assisti o filme quando passou na TV muito bom jamais esqueci tinha gravado no vídeo cassete pra assistir quando quisesse contei só até as 30 veses depois não contei mais kk e continuo assistindo ontem mesmo!
12/08/2023 at 14:43
Sérgio, eu tinha tantas fitas de video cassete com filmes que via milhares de vezes… saudade daquela época.
05/08/2023 at 14:55
Queremos o filme completo no YouTube
Esse filme fez parte de uma geração a primeira vês q assisti eu tinha 17 anos já estou com 48 anos e assisto até hoje clássico muito bom 👍 o livros tbm
12/08/2023 at 14:42
eu também tenho vívidas memórias desse filme. eu tinha 16 anos na época. lembro de ter assistido duas vezes seguidas.
Endosso a campanha para o Youtube resgatar o filme na íntegra.