
Pedro Páramo
“Na reverberação do sol, a planície parecia uma lagoa transparente, desfeita em vapores por onde se transluzia um horizonte acinzentado. E mais além, uma linha de montanhas. E maisalém ainda, a mais remota lonjura.
— E como é o seu pai, se é que se pode saber?
— Não o conheço — respondi.
— Só sei que se chama Pedro Páramo.
— Ora, veja!
— Pois é, me disseram que é esse o nome dele.
Ouvi de novo um “Ah!” do tropeiro.
Eu havia topado com ele em Los Encuentros, onde se cruzavam vários caminhos. Fiquei ali esperando, até que finalmente aquele homem apareceu.
— Para onde o senhor está indo? — perguntei a ele.
— Vou descendo, senhor.
— Conhece um lugar chamado Comala?
— Pois é para onde estou indo.
E eu o segui. Fui atrás dele tratando de me emparelhar com seu passo, até que pareceu perceber que eu o seguia e diminuiu a pressa de seu andar. Depois nós dois íamos tão próximos que nossos ombros quase se tocavam.
— Eu também sou filho de Pedro Páramo — ele me disse.
Uma revoada de corvos passou, cruzando o céu vazio, fazendo “cuar, cuar, cuar”.
Depois de varar os montes, descemos cada vez mais. Havíamos deixado o ar quente lá decima e fomos nos afundando no puro calor sem ar. Tudo parecia estar à espera de alguma coisa.
— Faz calor aqui — eu disse.
— Pois é, mas isso não é nada — respondeu o outro.
— Fique tranquilo. Quando chegarmos a Comala, o senhor vai ver o que é calor forte. Aquilo fica em cima das brasas da terra, bem na boca do inferno. Digo eu que muitos dos que morrem por lá, quando chegam ao inferno voltam para buscar um cobertor. ”
RULFO, Juan. Pedro Páramo. p. 16.
Entendi tudo sobre o que já tinha ouvido (ou lido) sobre Pedro Páramo. É maravilhoso, enxuto, instigante, latino-americano no osso e universal ao mesmo tempo. Entendi por que ele influenciou tantos escritores latinos e sua importância para a literatura mundial.
Juan Rulfo nunca fez faculdade. Sua reconhecida erudição veio exclusivamente de estudos e leituras feitos voluntariamente e obcessivamente. Essa pessoa era amiga de Graciliano Ramos, Gabriel García Márquez, Vargas Lhosa, Borges e muitos outros nomes consagrados da literatura latino-americana, tendo influenciado a obra dos três últimos.
Por sua vez, Rulfo também foi influenciado. Uma inspiração foi William Faulkner, perceptível na construção da narrativa.
Esse que é o escritor de ficção mais importante do México, segundo a crítica especializada, escreveu apenas um romance (novela) e dezessete contos. Mas não é qualquer produção. Pedro Páramo tem cumprimento de novela e potência de romance, então prefiro não definir. A edição que li tem 134 páginas.
Li em um único dia. Na verdade, em algumas horas (dormi meio tarde e paguei caro por isso, mas valeu a pena).
Foi tranquilo? No início não. Foi necessário voltar algumas partes para entender quem narrava ou o que estava acontecendo, se era presente ou flashback. Amo esse tipo de construção.
Vamos ao enredo. Um homem assiste à morte da mãe por causas naturais e ouve dela no leito de morte o pedido para que procure seu pai, Pedro Páramo, que ele não conheceu. Então ele parte para a cidade de Comala, no estado de Colima no México, onde nunca havia pisado, sendo surpreendido ao chegar por um cenário de abandono. As ervas tomavam conta das casas e não havia nenhuma pessoa morando lá.
Na verdade, essa parte de não haver habitantes morando em Comala é mais ou menos verdade, pois Juan Preciado vai conversar com muitos dos moradores que são na verdade almas penadas.
Não é um livro de terror ou uma mera história de fantasmas. A relação das pessoas daquele lugar com o sobrenatural é uma mistura de crenças dos povos originários do México e do catolicismo.
Importa saber da aridez do clima. É um cenário seco: sem água, sem alimento.
A seca é característica da região mesmo. Já a fome… essa tem outros agravantes.
De cara, Juan Preciado vai saber que não é filho único de Pedro Páramo. Embora não fossem reconhecidos, praticamente todos os moradores de Comala nascidos depois da puberdade desse senhor, teriam o sobrenome Páramo. O único fiho reconhecido, mesmo assim em circunstâncias dignas de nota, foi Miguel Páramo. E se metade de Comala tem sangue Parámo pela ação predadora de Pedro, outra parte também é sangue Páramo graças ao material genético de Miguel, que saiu ao pai em personalidade.
Há explicação para quase tudo: motivos das almas penadas terem ficado em Comala, a falta de alimentos, o abandono, o fato de Juan ter sido criado longe de Comala e do pai biológico. Tudo meio surreal, onírico, lindo. A escrita não é rebuscada, o que dá o tom de erudição à obra é a construção, a narrativa nada linear, que pode causar estranhamento nas primeiras dez páginas, mas assim que se pega o ritmo a leitura flui. Diria que fica irresistível.
Esse livro não entrará na malinha anual que vai ao sebo. Vai ficar quietinho na minha estante para releituras. Parece-me daqueles livros que crescem quando revisitados. Indispensável!
Comala é uma cidade abandonada por causas como o desalento, a infelicidade, a miséria. Com a trajetória da cidade explicada na trama.
O cenário não é muito descrito, assim como nada excede em Pedro Páramo. O leitor tem o suficiente para construir a imagem mental.
A cidade de Comala era sem arvores, com casas começando a ruir, sol ardente, seca, seca, seca. Uma coisa bang-bang.
Cerca de 6.000 cidades abandonadas do oeste estadunidense foram construídas durante a corrida do ouro entre os séculos XVII e XIX, quando eram terras sem lei. Os cenários dessas cidades com pessoas habitando podem ser vistos nos vários filmes hollywoodianos e esse tema é tão explorado que configura um gênero cinematográfico: Western ou Faroeste (corruptela de Far West). Não é como filmes do gênero terror, por exemplo, que podem ser produzidos nos mais diversos países e cenários. É um gênero exclusivo dos Estados Unidos.
Um exemplo desses locais, que não é ficcional é a cidade de Bodie, que fica no estado da Califórnia. Bodie chegou a abrigar 10.000 pessoas e é hoje uma cidade fantasma. Se tornou um ponto turístico preservado: Bodie State Historic Park.
A cidade de Bodie foi fundada em 1859, tendo sido abandonada em 1940 quando acabou o ouro.
Foi escolhida para se tornar um sítio de visitação histórica por seu estado de preservação. As cidades eram construídas muito rapidamente, as edificações eram todas de madeira, o que, se não bem conservado, tem um processo de deterioração mais acelerado que alvenaria. Sem contar as vilas que foram totalmente destruídas em incêndios.
Uma animação que gosto muito e que mostra uma cidade faroestiana que tem um ar de abandono e desesperança e que me lembrou a decadência de Comala é Rango.
Rango é aquele desenho que tem piadas sofisticadas ou de temática adulta e que a gente até questiona se realmente foi feito para o público infantil. Não há nada explicito, as imagens estão ok. Pode ser encontrado na Netflix.

Rango
Nesse filme, um camaleão picareta chega cheio de banca em uma cidade do velho oeste já bem decadente e conta tanta mentira exagerando seus feitos que acaba se tornando importante a ponto de ser a última esperança dos moradores.
A descrença, medo, miséria, falta de água e até mesmo uma certa estranheza nos personagens de Rango, se assemelham um pouco aos de Pedro Páramo.
Assim como a fictícia Comala e a abandonada Bodie, o México também tem suas cidades fantasma. Uma que, pelas fotos, é quase o que minha imaginação construiu para Comala é Cerro de San Pedro, no estado mexicano de San Luis Potosí, que fica a 5km da cidade de San Luis Potosí. A população é de 95 pessoas e vive da exploração turística daquela que foi uma cidade colonial que vivia de mineração de ouro e prata.
A Atividade turística só funciona nos finais de semana.
A região de Cerro de San Pedro era habitada pelos povos Chichimeca e Guachichil e tem o marco de sua fundação espanhola no ano de 1592, quando o colonizador tomou para si as áreas habitadas pelos povos originários em nome do Vice-Rei de Nova Espanha.
Sobre a debandada dos habitantes, parece não haver um marco ou uma data precisa, consta que no início do século XX poucas pessoas moravam ali, pois apenas algumas minas estavam ativas. Na região ainda há mineração a céu aberto operada com instrumentos e geotécnica moderna.
Dizem que ao caminhar pelas ruas desertas Cerro de San Pedro é possível encontrar o espírito de um menino que oferece laranjas aos passantes. Bem a cara de Comala…
RULFO, Juan. Pedro Páramo. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017.
VERBINSKI, Gore. Rango. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2001
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