
Querida Konbini
“Sugawara também é uma temporária, de vinte e quatro anos, animada e que fala alto. Ela é cantora em uma banda e costuma resmungar que, na verdade, gostaria de pintar de vermelho seus cabelos bem curtos. É uma menina simpática, com rosto rechonchudo, mas, antes de Izumi aparecer, vivia chegando atrasada e levando sermões do gerente por não tirar os brincos para trabalhar ou coisa parecida. Porém, Izumi a colocou na linha, chamando sua atenção de forma clara e direta, e agora Sugawara também é uma funcionária perfeitamente séria e dedicada. (…)
Meu eu atual é constituído quase inteiramente pelas pessoas com quem convivo. Trinta por cento vêm de Izumi, trinta por cento de Sugawara, vinte por cento vêm do gerente, sendo o restante uma combinação do que já absorvi de outras pessoas, como Sasaki, que saiu há seis meses, ou Okazaki, que era o líder dos temporários até um ano atrás.
Pego rapidamente as manias das pessoas ao meu redor, sobretudo em relação ao jeito de falar. No momento, minha fala é uma mistura do jeito de Izumi e de Sugawara.
Acredito que isso aconteça com a maioria das pessoas. Outro dia o pessoal da banda da Sugawara passou na konbini e vi que as meninas falavam e se vestiam iguais a ela.”
MURATA, Sayaka. Querida Konbini. p.32.
Querida Konbini foi indicado por uma amiga que tem muito bom gosto. Valeu, Maríllia!
É um livro muito bem escrito, leitura fluida, agradável e que propõe muitas reflexões. Contemporâneo e diferente.
A escritora japonesa Sayaka Murata criou os personagens e situações com sensibilidade extrema, especialmente a narradora e personagem principal, Keiko Furukura, que parece ter questões cognitivas.
Keiko foi uma criança tranquila, obediente, mas que tinha o raciocínio muito reto e apresentava dificuldades em entender e aplicar regras sociais. Um exemplo foi quando ela bateu com uma pá na cabeça de um colega da escola para separar uma briga que nem mesmo a envolvia. De fato a briga parou, mas Keiko e seus pais foram parar na diretoria da escola por conta da “ajuda” prestada pela menina, que, por sua vez, nem compreendeu direito onde tinha errado.
Keiko acabou desenvolvendo um método para que a deixassem em paz: manualizar e mimetizar o mundo. Passou replicar o que as pessoas faziam e responder sempre o que elas queriam ouvir, conforme sua própria decodificação ou o precioso auxílio de sua irmã. O convívio social acabou se tornando uma série de atitudes mecânica e meticulosamente calculadas, o que a manteve longe de confusões.
Quando chegou á universidade, descobriu que colegas trabalhavam em konbinis, lojas de conveniência que funcionam vinte e quatro horas. Essas lojas oferecem empregos precarizados, pagos por hora sem garantia de nada, que, por outro, lado também não exigem compromissos muito sérios por parte dos empregados, sendo fácil tanto ser contratado como deixar o emprego.
Existe um perfil esperado para os funcionários de Konbinis: estudantes, querendo uma graninha para viver enquanto terminam a faculdade; mulheres casadas, donas de casa na maior parte do tempo, que não querem depender exclusivamente da renda obtida pelo esposo; aposentados, que têm seus rendimentos garantidos e querem preencher o tempo ganhando um dinheirinho.
Ou seja, trabalha-se por turnos, normalmente meio período, recebe-se pouco e tem esse caráter de provisoriedade na ocupação da vaga por pessoas que não precisam de grandes soldos.
A Konbini tem um manual de conduta e regras sobre a loja e digamos que é um roteiro bastante fechado e completo. No guia da Kombini está disposto desde onde fica cada mercadoria e quando repor mercadorias nas prateleiras até com que frase se deve saudar os clientes. Eles têm várias frases prontas. Esse tipo de atendimento lembrou vários call centers e também um hotel em que fiquei hospedada em que os funcionários põe as mãos cruzadas na frente do peito e acenam com a cabeça quando cruzam com os hospedes nos corredores. Depois de um dia inteiro você quase faz a mesma coisa. Comportamento de manada.
Keiko ama a Kombini. É tudo tão previsível que ela se sente segura sabendo o que deve fazer, visto que sempre lutou com dificuldade para se portar fora daquele ambiente.
À medida que o tempo avança, as pessoas (família e amigos) começam a cobrá-la sobre quando vai arrumar um “emprego de verdade”.
Aí é que está a o pulo do gato do livro: acompanhando a história dessa mulher desde a infância e suas dificuldades de ajustamento social, bem como suas interações com outras pessoas, vários questionamentos universais serão propostos.
Por que as pessoas não conseguem simplesmente cuidar de suas próprias vidas? Se alguém é diferente e não está incomodando ninguém, por que não deixá-lo em paz com suas escolhas? Por que existe um checklist para a normalidade e por que as pessoas que o seguem não são necessariamente felizes?

Capa de As Viagens de Gulliver.
Quanto mais a personagem principal se esforça para atender ao checklist da normalidade, mais infeliz ela fica. Ela era uma adulta independente e feliz, que para calar críticas e opiniões não requisitadas, dava desculpas esfarrapadas e/ou inventadas aos que tentavam impeli-la ao enquadramento (casamento, filhos, outro emprego, etc.). Essas mentiras eram necessárias para manter um laço com essas pessoas “normais” sem abrir mão do que realmente importava para ela.
O tipo de interação que Keiko tem com seus pais, amigos e colegas de trabalho parecem as das histórias de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Em Querida Konbini, nos questionamos várias vezes quem são os desajustados. É uma sátira de costumes.
Há um constante questionamento da personagem e ela vai com o tempo e as experiências de vida evoluindo filosoficamente sobre os temas existenciais.
Esse processo de reflexão se assemelha ao vivido pelo personagem Gulliver e seus inusitados interlocutores embora os questionamentos naquela obra do século XVIII, sejam em nível universal e os de Keiko interferem mais na esfera da vida privada. Os diálogos de Querida Konbini e de As Viagens de Gulliver são maravilhosos. Não há como terminar essas obras sem pulgas atrás da orelha.
Gulliver é o aventureiro perfeitamente ajustado aos modos europeus, que vai repensar os costumes e as contradições inerentes a eles á medida que convive com seres diferentes dele e que têm outros tipos de organização e anseios.
Destaque para o mundo dos cavalos. Os cavalos eram seres totalmente racionais e pacíficos que não conseguiam assimilar, por exemplo, o conceito de invadir territórios para saquear ou com objetivos expansionistas e nem porque usar armas de fogo se elas não trazem nenhum bem. A essas dúvidas o Dr. Lemuel Gulliver teve muita dificuldade em responder. Ele simplesmente tinha sido ensinado a crer que países precisassem daquelas armas para se defender e para atacar e não havia ainda pensado sobre as reais necessidades humanas incutidas em tanta agressividade.
Personagens como Keiko ou seu colega de konbini, Shiraha, que não conseguem se ajustar às normas sociais, embora tentem, são expelidos do convívio reservado apenas aos conformados.

As Patricinhas de Beverly Hills (Clueless)
Um filme aclamado na cultura pop, que influenciou bastante os adolescentes dos anos 90, é a comédia As Patricinhas de Beverly Hills. Talvez todo filme de adolescentes populares versus nerds e esquisitos, sirva para ilustrar esse ponto. Escolhi esse porque me enquadro nos adolescentes dos anos 90 que eram muito fãs de Cher (Alicia Silverstone), Dionne (Stacey Dash) e Tai (Brittany Murphy).
As Patricinhas de Beverly Hills é inspirado no livro clássico Emma, de Jane Austen, e conta a história de Cherilyn Horowitz uma adolescente inteligente, responsável, carinhosa, linda que é filha de um viúvo bastante rico. As virtudes de Cher convivem e até combinam com um lado fútil tão expressivo quanto. A melhor amiga de Cher é Dionne, também rica, e elas são as garotas mais populares da escola particular que frequentam em Los Angeles nos Estados Unidos. Como todo filme de High School estadunidense, há também a turma dos “desajustados”. Importa dizer que os dessa trama não são desajustados e nem solitários, apenas não seguem, e nem querem seguir, o padrão do séquito de Cher e por isso pertencem a um grupo menor de alunos.
Então chega a aluna nova: Tai Fraiser. Ela é a cara do grupo dos desajustados. Mas, por uma questão “humanitária” Cher adota a garota como sua causa e passa a ditar as regras para fazê-la pertencer a seu mundo. Vai ser uma supertransformação. E vejam: a intenção de Cher é fazer o bem, porém apesar de seus bons propósitos ela passa por cima da personalidade da nova amiga e exige dela comportamento padronizado para fazer parte dos populares do colégio.
Aliás, muitas pessoas são objeto das boas intenções de Cher, em alguns casos vai dar bons frutos e em outros nem tanto. O ponto é que a turma dos populares pode representar muito bem os amigos de Keiko, que seria uma espécie de Tai.
O nome original de As Patricinhas de Beverly Hills é Clueless (“Sem Noção” em tradução livre) e mais uma vez a tradução de títulos piorou a experiência fazendo uma alteração muito grande e desvirtuando o sentido do título.
Tem uma música ótima chamada Little Boxes, da cantora americana Malvina Reynolds, que poderia ser a música dos personagens que rodeiam Keiko. Basicamente as pessoas seriam caixas de cores diferentes, mas feitas do mesmo material, que vivem da mesma forma e sobre as quais se esperam os mesmos comportamentos.
“Little boxes on the hillside/ Little boxes made of ticky tacky/Little boxes on the hillside/Little boxes all the same/There’s a pink one and a green one/And a blue one and a yellow one/ And they’re all made out of ticky tacky/And they all look just the same.
And the people in the houses/All went to the university/Where they were put in boxes/And they came out all the same/ And there’s doctors and lawyers/And business executives/ And they’re all made out of ticky tacky/ And they all look just the same”
Bônus: achei, sem querer, uma versão de Little Boxes em português cantada por Nara Leão. Interessante!
MURATA, Sayaka. Querida Konbini. Tradução: KOHL, Rita. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
SWIFT, Jonathan. As Viagens de Gulliver. Tradução: BARBOSA, Rui. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
HECKERLING, Ana. As Patricinhas de Beverly Hills. EUA: Paramount Pictures, 1995.
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