
O Amor nos Tempos do Cólera
“Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não nos serve para nada. Fermina Daza tinha aguentado com má vontade o jubiloso amanhecer do marido. Agarrava-se aos últimos fios de sono para não enfrentar o fatalismo de uma nova manhã de presságios sinistros, enquanto ele despertava com a inocência de um recém nascido: cada novo dia era um dia a mais que ganhava. Ouvia-o despertar com os galos, e seu primeiro sinal de vida era uma tosse sem som nem tom que parecia de propósito para que ela também despertasse. Ouvia-o resmungar, só para inquietá-la, enquanto tateava em busca dos chinelos que deviam estar junto da cama. Ouvia-o buscar caminho até o banheiro aos tropeços pela escuridão. Ao cabo de uma hora no escritório, quando ela havia dormido de novo, ouvia-o voltar para se vestir, ainda sem acender a luz. Certa vez num jogo de salão, lhe perguntaram como se definia a si mesmo, e ele tinha dito: ‘sou um homem que se veste no escuro’. Ela o ouvia sabendo muito bem que nenhum daqueles ruídos era indispensável, e que os fazia de propósito fingindo o contrário, assim como estava ela acordada fingindo que não. Os motivos dele eram certos: nunca precisava tanto dela, viva e lúcida, como nesses momentos de confusão.”
MÁRQUEZ, Gabriel García. O Amor nos Tempos do Cólera. p. 39.
Gabriel García Márquez, meu queridinho!
Quando escrevi sobre Cem anos de Solidão mencionei que tato o livro quanto o autor são meus preferidos. Coincidência ou não, eu e Gabo fazemos aniversário no mesmo dia: seis de março.
As obras são sempre fenomenais, até agora não li nada dele que não tenha me causado efeito duradouro, seja de êxtase ou engulhos. Do melhor para o menos excelente, a escala iria de Cem anos de Solidão a Memórias de Minhas Putas Tristes, faltando poucas obras para preencher as lacunas.
O Amor nos Tempos do Cólera, junto com Ninguém Escreve ao Coronel, são os García Márquez favoritos de García Márquez. Esse é um livro menos desafiador, em termos de fluidez da leitura, que Cem Anos de Solidão, mas de maneira nenhuma é uma obra trivial.
A história de Florentino Ariza e Fermina Daza é cheia de percalços, encontros e desencontros. É das coisas mais lindas que já li.
Eles se apaixonam quando adolescentes. Ela filha de pai rígido, troca cartas com Florentino com a colaboração da tia que lhe fazia as vezes de mãe, posto que a mãe biológica já era falecida. Florentino compõe uma valsa para ela, que toca todos os dias em um cemitério da vizinhança para que ela saiba que ele está à sua espera. A escolha do local se deve à rudeza do pai de Fermina que não pode nem desconfiar que a filha está sendo cortejada.

Filme: O Amor nos Tempos do Cólera Com participação de Fernanda Montenegro.
Fermina, que estuda em uma escola religiosa de princípios comportamentais bastante conservadores, é pega escrevendo bilhete para Florentino. Nesse dia, ela foi expulsa da escola. O pai então mandou a tia cúmplice embora e saiu com a filha em uma viagem muito longa para visitar os parentes em outras cidades da Colômbia.
Os pombinhos vão continuar se comunicando nesse período de distanciamento forçado. O modo encontrado para que as cartas continuem chegando é engenhoso e lindo. Isso vai durar até o dia em que Fermina volta a Cartagena das Índias. Não darei detalhes do que acontece, porque merece ser lido e relido de tão bem escrito. Só adianto que ela se casará com outro: um médico que cuidou dela enquanto estava acometida da doença da época: o cólera.
Sobre o cólera, ao longo da história essa peste vai matar muitas pessoas. Deixando corpos empilhados Colômbia a fora. A moléstia que será responsável pelo casamento de Fermina, pela glória profissional do marido dela, o Dr. Juvenal Urbino, pelo pânico na cidade e pelo lindo, lindo, lindo final do livro. Serão vários surtos de cólera ao longo de quase sessenta anos.
Pode-se classificar O Amor nos Tempos do Cólera como um romance de formação? Diria que sim. Acompanhamos o desenvolvimento de dois personagens intimamente: Fermina Daza e Florentino Ariza. E que personagens! Os dois são excelentes. Gente, é Gabriel García Márquez, o fôlego falta ao leitor várias vezes durante a leitura. Tudo é muito bom, até as passagens escatológicas.
As formas de interação amorosa apresentadas no livro me lembraram várias obras. Escolhi duas que se relacionam com referências que considero de altíssima qualidade.
Comecemos por um filme brasileiro: Central do Brasil. Esse filme foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e também ao de melhor atriz, para Fernanda Montenegro. Não levou, mas mereceu. Até Glenn Close concorda.
Perdeu as estatuetas para A Vida é Bela (melhor filme estrangeiro) e para Gwyneth Paltrow (melhor atriz por Shakespeare Apaixonado).
Conta a história de Dora, uma mulher que vive de escrever cartas na estação de ônibus e trem mais movimentada do Rio de Janeiro: a Central do Brasil.
Pessoas que não sabem escrever pagam para que ela escreva cartas para seus parentes, cônjuges e amigos podendo pagar apenas pela carta ou com uns trocados a mais para que ela coloque a carta no Correio.
Um dia, Dora atende a uma mulher que precisava se comunicar com o pai de seu filho. Essa mulher paga pelo serviço completo: escrita e postagem. O filho da cliente de cara desconfia da honestidade de Dora, o que se prova certo no fim das contas.
A carta nunca foi postada. A mãe do menino foi atropelada e morreu. O menino emigrante da região nordeste, sem outro parente no Rio de Janeiro a não ser a mãe, retorna a Dora para cobrar dela a resposta do pai, acabando por fazê-la se responsabilizar por ele e embarcar em uma viagem para leva-lo para o pai.
Intenso, né? Esse filme, assim como O Amor nos Tempos do Cólera, vai tirar o fôlego do espectador por diversas vezes.
Florentino Ariza, romântico incorrigível, depois de ter sido dispensado por Fermina que se casou com outro, começa a trabalhar na companhia de navegação do tio, um serviço sério, sem lirismo. Ele era um ótimo funcionário, mas e a poesia da vida? E todo aquele amor que ele precisava gastar?
Florentino passa a ir regularmente ao porto da cidade escrever cartas para apaixonados analfabetos. Ele não era um simples registrador das palavras ditadas como era Dora, ele era um poeta, que transformava as mensagens em peças excepcionais e foi responsável por algumas uniões. Ele não cobrava, visto que seu ganha pão era a companhia de navegação fluvial. Era simplesmente uma forma de exercitar sua faceta romântica, dar vazão a todo ao amor contido em sua alma, por meio das histórias de amor de desconhecidos.
E por falar em histórias de desconhecidos, quem tinha muito interesse nelas eram as telefonistas de Cartagena. Florentino Ariza e Fermina Daza tinham uma preocupação. Não conversar ao telefone para que as telefonistas da cidade não os maldissessem. Era mais uma questão de costumes e de evitar que a imaginação das atendentes transformasse uma convivência platônica, que naquele momento era de simples amizade, em fofoca. Telefone em casa era coisa de muito poucos, a cidade em si era pequena. Estamos falando de Cartagena no início do século XX. Tanto Florentino quanto Fermina tinham aparelhos ao seu dispor. As ligações eram feitas por intermédio de telefonistas que operavam da seguinte forma: fazia-se uma ligação para a central, solicitava que a telefonista completasse a ligação para determinado ramal e ela finalizava a ligação com a outra parte interessada. Acontece que nem sempre as telefonistas desligavam seus aparelhos ao passar uma ligação, tendo se tornado o telefone uma ponte para exploração da vida alheia.
Sendo assim, Fermina cortou as ligações de Florentino, afinal ela era recém viúva e ele era um solteirão. Não queria nem que as telefonistas os interpretasse mal por ouvir suas conversas e nem que, em uma cidade tão pequena, elas contassem a frequência das conversas e daí deduzissem o que suas cabeças fossem capazes de conjecturar. Isso poderia se tornar uma fofoca enorme sem que de fato nada houvesse de censurável.
Quando li essa passagem das telefonistas veio à memória um filme de 2006 que também foi indicado e ganhou melhor filme estrangeiro no Oscar de 2007, o alemão: A Vida dos Outros.
Se passa durante a Guerra Fria, na Berlin Oriental. Nesse tempo, todos os cidadãos eram passíveis de vigília pelo governo, para garantir que não estavam traindo o governo soviético ou mesmo que tivessem opiniões contrárias ao regime socialista.
No caso, a vítima era um escritor. Considerado o único escritor não subversivo da Alemanha Oriental.
Justamente por essa singularidade, o governo decide espioná-lo, destacando um agente especialmente para isso. Então serão instaladas escutas no apartamento e no aparelho de telefone daquele escritor, que obviamente não era um conformado como queria aparentar. O plot não está no fato de ser o personagem principal um “subversivo”, mas no espião que tomou gosto por bisbilhotar a vida do casal grampeado, acompanhando-os como uma novela. Que agonia! Maravilhoso!
Veja que o gosto por bisbilhotar passa desde uma simples telefonista em Cartagena das Índias até um espião treinado na Alemanha Oriental.
As três obras citadas nesse texto beiram a perfeição. São imperdíveis, sensíveis, fortes. Recomento de olhos fechados, ou melhor, bem abertos para apreciá-las.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução: CALADO, Antônio. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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