O Homem de Giz

“A  cabeça da garota estava apoiada em uma pequena pilha de folhas de tom marrom-alaranjado.

Os olhos amendoados estavam fixos na copa de figueiras,  faias e carvalhos,  mas não enxergavam os raios de luz que tentavam atravessar os galhos, salpicando o chão do bosque de dourado.  Não piscavam enquanto reluzentes besouros corriam sobre as pupilas.  Eles não viam mais nada,  exceto a escuridão.

Perto dali, a mão pálida se projetava da pequena mortalha de folhas,  como que pedindo ajuda ou se certificando de não estar sozinha.  Mas nada estava ao  seu alcance.  O  restante  do corpo  estava  longe,  escondido  em  outros  pontos isolados do bosque.

Um galho estalou ali perto,  alto como um fogo de artifício em meio ao silêncio,  e uma revoada de pássaros emergiu da vegetação rasteira.  Alguém estava se aproximando.

Ajoelharam-se junto à garota que nada via.  Delicadamente,  acariciaram seu cabelo e o rosto gelado com os dedos trêmulos de ansiedade.  Então,  pegaram sua cabeça,  tiraram algumas folhas agarradas às bordas irregulares do pescoço e a guardaram com cuidado em uma mochila,  aninhada entre alguns pedaços quebrados de giz.

Após um instante de reflexão,  cerraram os olhos da garota.  Depois,  fecharam o zíper da mochila,  levantaram e a levaram.”

TUDOR, C. J. O Homem de Giz. p. 9.

 

Nem só de alta literatura vive um leitor. E ainda bem que existem livros leves que nos divertem e ajudam a limpar a cabeça, seja depois de leituras pesadas ou simplesmente para aliviar as pressões da vida. Outra vantagem desses livros-entretenimento é que muitas vezes eles dão bons filmes ou séries. É o caso de O Homem de Giz, da autora C.J. Tudor. Quando tiver adaptação para o audiovisual, eu vou assistir.

É maravilhoso? Não. Devorei em dois dias? Sim. Lerei de novo? Não. Recomendo a outros leitores? Sim, principalmente para quem gosta de Stephen King.

O Homem de Giz conta a história de um grupo de amigos que vive em uma cidade em que acidentes e assassinatos acontecem. Esses acidentes estão sempre acompanhados de um sinal: bonecos palito desenhados com giz.

Não tem nada à toa no livro. Nenhum objeto e nenhum personagem está ali só por estar. O que faz esse thriller bem interessante. Você pode encarar como uma história ou como um jogo desses que a cada etapa e a cada conjunto de pistas temos que ir desvendando mistérios e quem fechar o raciocínio certo primeiro ganha. Adivinhei alguns dos mistérios, mas nem me passou pela cabeça o desfecho. A maioria dos plot twists realmente me pegaram de surpresa.

A escrita de C. J. Tudor é bem fluida, ágil e agradável.

A autora, que é declaradamente fã de Stephen King, escreveu este livro inspirada por It: A Coisa, que já tem texto aqui.

Portanto, não foi surpresa encontrar tantos elementos parecidos ao longo do texto. Talvez O Homem de Giz ultrapasse o limite da inspiração e seja mais uma homenagem a It.

Vamos a alguns dos pontos em comum entre It e O Homem de Giz:

  1. Idas e vindas, alternando a narrativa em duas épocas: O Homem de Giz alterna acontecimentos ocorridos em 1986 e 2016; o livro It: A Coisa alterna 1957 e 1984 e o filme It: A Coisa  transita entre a década de 1980 com a década de 2010;
  2. Os personagens principais são uma turma de crianças que se separa e volta a se reunir 30 anos depois por motivos sombrios;
  3. A única menina do bando é linda, ruiva, amada pelo protagonista e é filha de pai violento;
  4. Assim como Penywise deixa os balões, o criminoso deixa desenhos de homens de giz indicando sua participação no ocorrido;
  5. Tem a turma que faz bulling e a turma que sofre com os valentões.

Tive também uma sensação de estar lendo um livro de Dan Brown. O único dele que li foi O Código Da Vinci. Para o qual se aplica a mesma fórmula do segundo parágrafo deste texto. Aliás, a escrita de C. J. Tudor é mais parecida com a de Dan Brown do que com a de Stephen King e O Código da Vinci também pode ser encarado como um jogo de pistas.

O Código Da Vinci

No enredo, a principal semelhança com o best seller de Dan Brown era sem dúvida o professor Halloran (apesar do nome ser emprestado de um personagem de O Iluminado, do Stephen King), figura misteriosa, que se aproxima do menino Eddie, sempre deixando na dúvida se ele é do time dos mocinhos ou se é o bandido. Sr. Halloran é albino e enigmático, como Silas, o vilão mais interessante de O Código da Vinci.

O Homem de Giz toca em assuntos sérios primeiro sob a perspectiva de crianças e depois dos adultos, o que é interessante, mas não há aprofundamento nesses temas. Os temas transversais são expostos somente o indispensável ser para compor o mistério. Nesse ponto ele difere muito de It, que constrói personagens com profundidade.

Imagem da série Os Simpsons

Sobre o giz, esse material lembrou outras duas referências. Uma muito interessante que compõe a abertura da série Os Simpsons, é Bart cumprindo um castigo escolar em que escreve repetidamente uma frase na lousa. A cada episódio das 33 temporadas a frase é alterada. no primeiro episódio da série foi “I will not waste chalk” (Eu não vou desperdiçar giz). Também já foi: “The world may end in 2012 but this show won’t” (o mundo pode acabar em 2012, mas esse show não); “Genetics is not an excuse” (genética não é uma desculpa); “I won’t eat things for money” (Não vou comer coisas por dinheiro). No site Wikisimpsons estão listadas todas as frases escritas por Bart Simpson na infame lousa da abertura.

Poster do filme Mary Poppins

A outra referência é bem mais poética e está tanto no livro quanto no filme Mary Poppins na passagem em que Mary e seu amigo Bert entram em um dos desenhos que ele fez na calçada usando giz.

Bert que é um representante das classes menos abastadas de Londres no início do século XX, tem como uma de suas fontes de renda fazer complexos desenhos de giz nas calçadas e recolher gratificações dos transeuntes em seu chapéu.

O filme é um clássico e é também um dos que mais marcou minha infância, a única palavra capaz de descrever meus sentimentos em relação à película é supercalifragilisticexpialidoce. apesar de ser uma palavra marcante, é importante contar que foi inventada pelos roteiristas da Walt Disney Company para o filme, e dizem que a autora P. L. Travers, se sentiu ultrajada por tal  adição à sua história.

Mary Poppins, edição linda demais da Cosac Naify.

A cena em que Bert e Mary entram no quadro é um pouco diferente no livro e no filme, mas as duas versões são lindas. O filme, apesar de ter aquelas adaptações que a maioria dos filmes oriundos de livros tem, captou bem a aura de magia que a babá “praticamente perfeita em todos os aspectos” transmitiu durante a leitura. Um dia pretendemos comentar Mary Poppins mais detidamente, porque merece.

 

TUDORS, C. J. O Homem de Giz. Tradução: RAPOSO, Alexandre. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2018.

TRAVERS, P. L. Mary Poppins. Tradução: TERRON, Joca Reiners. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2014.

KING, Stephen. It: A Coisa. Tradução: WINARSKI, Regiane. Rio de Janeiro: Suma, 2021 (27ª reimpressão).

BROWN, Dan. O Código Da Vinci. Rio de Janeiro: Arqueiro, 2021.