Cem Anos de Solidão

“No entanto, na impenetrável solidão da decrepitude teve tanta clarividência para examinar até os mais insignificantes acontecimentos da família que pela primeira vez viu com nitidez as verdades que suas ocupações de outros tempos tinham impedido que visse. Na época em que preparavam José Arcádio para o seminário, já havia feito uma recapitulação infinitesimal da vida na casa desde a fundação de Macondo, e tinha mudado por completo a opinião que sempre teve de seus descendentes. Percebeu que o coronel Aureliano Buendia não tinha perdido o carinho pela família por causa do endurecimento da guerra, como ela acreditava antes, mas que nunca havia realmente gostado de ninguém, nem mesmo de sua esposa Remédios ou das incontáveis mulheres de uma noite que passaram pela sua vida, e muitos de seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por idealismo, como todo mundo achava, nem havia renunciado por cansaço à vitória iminente, como todo mundo achava, mas havia ganhado e perdido pelo mesmo motivo, a pura e pecaminosa soberba. Chegou à conclusão de que aquele filho por quem ela teria dado a vida era simplesmente um homem incapacitado para o amor.”

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. p. 259.

 

 

Que responsa! Já falei algumas vezes sobre Cem Anos de Solidão, que é meu livro preferido da vida. É a coisa mais linda que eu já li e é também o favorito de muita gente, sendo inclusive considerando o segundo livro mais importante da língua espanhola, perdendo apenas para Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

Mais credenciais? Bora lá… Esse livro ajudou a consolidar a literatura latino-americana nas altas rodas literárias e teve grande influência na escolha de Gabriel Garcia Marquez para receber o Nobel de literatura em 1982.

É interessante observar a participação de Gabo na cerimônia. Primeiro porque ele quebrou o protocolo de vestimenta e trajou uma roupa típica colombiana. E segundo por seu discurso sobre a solidão da América Latina. O discurso fala da invisibilidade de um continente inteiro por parte dos países desenvolvidos que nos tratam como seus quintais e que fechavam os olhos e se recolhiam a suas conchas enquanto ditaduras e guerras internas devassavam populações em países como Nicarágua, El Salvador, Chile, Uruguai, Brasil e Colômbia.

“Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.”

Gabo na cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel

“Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta.

Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.”

(Trechos do discurso)

 

Cem Anos de Solidão, que teve influência da obra Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo em sua concepção, superou o criador e tornou-se ele mesmo a influência máxima do gênero, que não nasceu na América Latina, mas que aqui adquiriu características próprias. Depois desse livro, muitos outros autores latinos se inspiraram para criar obras de realismo fantástico.

Falamos aqui nesse site sobre A Casa dos Espíritos, obra mais conhecida de Isabel Allende, que é muito bom e tem óbvia influência de García Márquez na construção dos personagens e no mágico misturado com a realidade brutal do Chile no século XX. A primeira parte de A Casa dos Espíritos é quase um spin off ou uma fanfic de Cem Anos de Solidão.

A Casa dos Espíritos

Estamos aqui falando de uma família, os Buendia, que lideram uma comunidade até um lugar ermo na floresta colombiana em que fundam sua própria vila: Macondo.

Inicialmente os Buendia são cinco pessoas: José Arcádio, Úrsula, Amaranta, Aureliano e José Arcádio (filho). Eles são o pilar daquela comunidade, as decisões sempre passam por José Arcádio Buendia. O livro vai acompanhar a saga da família Buendia desde a criação de Macondo, passando por sua fase de ascensão e chegando ao declínio da vila e da família.

Nesse trajeto, os Buendia testemunharão comitivas de ciganos levando truques e objetos nunca vistos na região (alguns deles já bastante comuns fora de Macondo como o gelo e o imã), as primeiras investidas do governo tentando estender suas regras àquela comunidade, a chegada da igreja, ferrovia, empresas estrangeiras e outras tantas coisas sempre revestidas de magia. Temos os clarividentes, os personagens quase míticos como Úrsula Iguarán, Remédios a Bela, o Coronel Aureliano Buendia, Pilar Ternera, Rebeca, Fernanda del Carpio.

Todos os personagens têm contribuição relevante para a trama e são lindamente construídos. O leitor acompanha cem anos na vida dos Buendia e seus agregados. E apesar de serem uma família numerosa, cada um, a seu modo, vive só.

Daquele casal inicial, Úrsula e José Arcádio, dedesdobram sete gerações. Uma das características mais interessantes e também a maior causadora de confusão durante a leitura é a sistemática repetição dos nomes. Serão quatro José Arcádio; um Arcádio; uma Úrsula; uma Amaranta; uma Amaranta Úrsula; duas Remédios, uma Renata Remédios e vinte e dois Aureliano (alguns variando o sobrenome). Cada Aureliano é filho de uma mãe diferente e dezoito deles são filhos do mesmo pai, que se chama Aureliano.

Árvore Genealógica dos Buendia (O link leva a um vídeo com spoilers).

Entendeu? A gente desenha. Aliás o próprio Gabo desenhou.

Li Cem anos de Solidão em duas edições diferentes, com traduções também diferentes e em ambas havia o precioso auxílio de uma árvore genealógica dos Buendia. É bem legal não se fiar na árvore e ir você mesmo desenhando a sua para depois comparar com a do livro e ver se conseguiu captar quem vem de quem.

Esse livro, publicado pela primeira vez em 1967, é definitivamente um clássico segundo a definição de que clássicos nunca cessam de dizer o que vieram dizer e nunca se tornam irrelevantes ou datados. Sempre serão dignos de nossa atenção.

Coincidentemente ou não, a Disney lançou agora, no fim de 2021, a animação Encanto, que para esse site e essa espectadora foi um presente.

Quando li A Casa dos Espíritos, terminei com a sensação de que deveria reler Cem Anos de Solidão. Então, algumas semanas depois, assisti com minha filha a animação Encanto e foi uma experiência única. Enquanto ela se divertia com aqueles maravilhosos personagens, o que inclui a “casita”, eu delirava com as referências a Cem Anos de Solidão.

Encanto também é a história de uma família, os Madrigal. Eles lideram uma expedição das pessoas de sua vila em busca de outro lugar para morar e acabam fundando uma comunidade no meio de uma floresta colombiana. Assim como Úrsula, que é o personagem fio, que a trancos e barrancos mantém a família coesa, a matriarca dos Madrigal chamada de Abuela (avó em espanhol) é quem comanda o seu clã.

Cada membro da família Madrigal tem um poder especial, exceto a personagem principal: Mirabel. Também cada componente da família Madrigal sofre de solidão carregando segredos em nome de um propósito: servir à comunidade e manter o legado da família. O desenho é uma jornada de descobertas e intimidades tão delicadas e profundas que levarão à reflexão sobre vários temas como vida de aparências, compromissos e tradições sem sentido, respeito às diferenças e escuta empática. Lindo demais.

E aí? Achou confusa a família Buendia? E a Madrigal? Então vamos conversar sobre outra numerosa prole, uma das mais complexas que a imaginação humana e anos e anos de tradição oral com histórias sendo ampliadas e recontadas foi capaz de tecer: a descendência de Zeus.

Mitologia Grega é dos mais complexos e interessantes dos textos fundadores.

O que estamos considerando como textos fundadores são aquelas histórias de onde partiram inúmeras outras histórias. Exemplos são a mitologia Greco-Romana, a mitologia nórdica, a Bíblia e demais textos base das mais diversas religiões.

Se Shakespeare influenciou gerações e gerações de criadores de histórias, ele mesmo por sua vez foi influenciado por outras histórias mais antigas. Por exemplo, o personagem Macbeth é muito parecido com Saul, primeiro rei Israelita que fica paranoico tentando a qualquer custo se manter no poder.

Mas, voltemos a Zeus começando pela ascendência. Zeus era o filho mais novo de Cronos e Reia. Seus irmãos eram Poseidon, Hades, Héstia, Demeter e Hera. Cronos comeu, ou melhor,  engoliu todos os filhos menos Zeus que foi escondido do pai. No lugar do bebê Zeus, Reia deu ao cônjuge uma pedra embrulhada em um manto para que fosse engolida. Quando essa criança cresceu deu um jeitinho de fazer o pai vomitar os irmãos. Aí já começou a treta, porque Zeus salvou os irmãos de serem digeridos. Mas, apesar de ser o que nasceu por último ele cresceu do lado de fora do ventre materno (ou paterno, no caso) e se tornou adulto ao passo que os irmãos regurgitados saíram de dentro de Cronos ainda pequenos.

Pronto, Poseidon, na condição de filho mais velho na ordem dos nascimentos nunca aceitou muito bem a autoridade do irmão mais novo e mais velho ao mesmo tempo.

E agora? Os Buendia já parecem simples para você?

Continuando… Zeus se casou com sua irmã Hera e isso entre as divindades era de boas. Com ela teve três filhos: Ares, Hebe e Hefesto. Mitologia é construção popular, tradição oral e algumas linhas dão conta de que Hefesto era filho só de Hera, sem participação de nenhum deus ou mortal.

Zeus era um safado e Hera não suportava esse comportamento do marido, se vingando muito cruelmente das mulheres e dos filhos delas. Considerando que toda relação sexual de um deus, obrigatoriamente gera um descendente e que Zeus era um saracoteador, o grande líder do Olimpo teve cento e quatorze filhos no total.

Para entender melhor essa complicada genealogia, recomendo todo o podcast Noites Gregas, do professor Claudio Moreno. É sensacional. Sobre a prole e a vida de Zeus os episódios 6 a 9 são bem instrutivos. Na verdade, a prole de Zeus é tão numerosa que todo Podcast acaba tratando desse tema direta ou indiretamente.

É delicioso, imperdível! Lá encontraremos bibliografia, nomenclatura grega e suas correspondências na versão romana, detalhes sobre o que simbolizam cada figura mitológica. Para o que nos interessa aqui, acompanhamos muitas das aventuras amorosas/sexuais de Zeus e as ardilosas tentativas de vingança perpetradas por Hera, além de toda a humanidade das emoções que guiam os mitos gregos e os tornam tão próximos de nós.

Noites Gregas costuma se referir a dois autores principais no delineamento da mitologia grega: Homero e Hesíodo. Esse segundo compilou em sua Teogonia a origem das personagens mitológicas, auxiliando muito a compreensão de quem é filho de quem e em que contexto cada um surgiu. Ao passo que Homero poetizou duas sagas que permitiram reconstituir o modo de ação dos deuses, semideuses e mortais por meio das obras Ilíada e Odisseia.

O verbete “Zeus” na Wikipedia organizou em tabelas a descendência de Zeus, separando por relacionamentos com mortais e imortais. Vale dar uma olhada. A imagem organizada em forma de árvore genealógica da descendência de Zeus é do blog mitologiagrecoromanapt12.blogspot.com.

Por fim, destacamos os personagens femininos de Cem Anos de Solidão. Em contraponto com a coragem imatura e irresponsável dos José Arcádios, Aurelianos e suas variações, quem manteve a comida na mesa, a hospitalidade, o trabalho doméstico, a educação dos Buendia foram,  à duras penas, as mulheres. Com os animais de caramelo de Úrsula Iguarán, as rifas de Petra Cotes, as regras de Fernanda o acolhimento de Pilar Ternera, Amaranta e Remédios, e à despeito da imperfeição humana dessas personagens fortes e sensacionais, sem elas os Buendia, provavelmente não chegariam a cem anos de longevidade da linhagem.

E com essa declaração de amor a Gabriel García Márquez, Livros & Outros chega a um ano! Uma volta completa ao redor do sol.

Obrigada a todos que seguem o Livros & Outros aqui no site e/ou no Instagram. Amo fazer isso e amo o feedback. Esse projeto trouxe a oportunidade de conversar sobre um assunto que sempre me fascinou com pessoas que também curtem literatura.

Não há boa ou má literatura, há livros que nos pegam e livros que não nos prendem. De qualquer forma, há que se dar uma chance a tudo o que alguém teve o trabalho de se sentar para escrever. Aqui, só escrevo sobre os livros, filmes, músicas, séries que, de alguma forma, me pegaram. Toda arte tem seu público. É tudo uma questão de gosto.

Obrigada, mais uma vez!

1 ano!!!

 

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. Rio de Janeiro: Record, 2020.

ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. Tradução: PEREIRA, Carlos Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

HOWARD, Byron & BUSH, Jared. Encanto. EUA: Disney, 2021.

MORENO, Claudio & SPECK, Filipe. Noites Gregas. In:https://noitesgregas.com.br/. 2019 – atual.