
Capa de As Intermitências da Morte
“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia. Sangue, porém, houve-o, e não pouco. Desvairados, confusos, aflitos, dominando a custo as náuseas, os bombeiros extraíam da amálgama dos destroços míseros corpos humanos que, de acordo com a lógica matemática das colisões, deveriam estar mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos ferimentos e dos traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim eram transportados aos hospitais, ao som das dilacerantes sereias das ambulâncias. Nenhuma dessas pessoas morreria no caminho e todas iriam desmentir os mais pessimistas prognósticos médicos.”
SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte.
Incrível!
Mais um favorito da vida, especialmente a primeira metade desse livro, que pode ser dividido em duas partes.
A obra As Intermitências da Morte começa com os humanos compreendendo a morte e segue com a morte compreendendo os humanos.
Não pensem que esse texto segue a onda de terror dos dois últimos, muito pelo contrário As Intermitências da Morte é um livro bastante bem humorado, sendo mais irônico e ácido na primeira parte e sensível e observador terno na segunda. Nada nada de medo!
José Saramago, escritor português, ateu e laureado com o Nobel de literatura em 1998, publicou em 2005 As Intermitências da Morte, livro relativamente curto, porém intenso nas reflexões que propõe e bastante frenético na apresentação da sequência de acontecimentos.
Trata-se de um momento em que a morte, de saco cheio de não ser reconhecida pela humanidade que a trata como um mal, decide parar de matar por um ano. Em um ano inteiro, em um dado país, nenhum humano morreu. Isso não se aplicou a outras formas de vida, posto que as mortes que cuidam de bichos e de plantas são outras entidades e essas prosseguiram trabalhando.
Pronto! Instalou-se o caos.
Asilos e hospitais superlotados, pessoas em permanente agonia à beira da morte, parentes desesperados por presenciar o sofrimento de seus entes queridos (que eram de todas as idades, inclusive bebês que não deveriam ter sobrevivido ao parto, por exemplo). Nada dava fim a esse cenário de desespero.
Em outro lado do balcão, algumas profissões tinham seus representantes mais desesperados que outras, por exemplo: políticos vendo os gastos com previdência virarem um saco sem fundo; funerárias e fabricantes de caixões indo à falência; seguros de vida perdendo sua utilidade.
Filosoficamente essa pausa da morte também causou rebuliço e constrangimentos tanto às religiões, cujo prêmio para o cumprimento das rígidas regras é a boa vida no além túmulo e agora não tinha essa recompensa a oferecer, pois ninguém morria, quanto à filosofia, que se pôs a complexos colóquios para tentar compreender essa nova realidade.
De todos os seguimentos profissionais e econômicos mencionados nos últimos parágrafos, apenas o setor dos seguros de vida se saiu bem. Leia à As Intermitências da Morte e saiba como.
Além dos pré-existentes, emergiu um novo setor: a Maphia. Com ph para diferenciar da quela outra com f. Interessantíssima.
A pandemia que assola o planeta terra desde fins de 2019, trazendo muito mais mortes do que o esperado em períodos de normalidade, interpôs a esses mesmos setores desafios semelhantes. É interessante pensar em como uma situação hipotética de ausência de morte, pode causar problemas tão parecidos aos vividos pela humanidade em uma situação real de excesso de morte.

Saramago e sua esposa Pilar del Rio a quem ele dedicou a obra As Intermitências da Morte.
Em ambos os casos temos famílias desesperadas por presenciar o sofrimento de seus entes queridos e tendo poucas opções para atenuá-los. Tivemos hospitais lotados, falta de preparo dos serviços funerários, sovinices dos planos de saúde, que na mesma linha do seguro de vida imaginado por Saramago, sempre se dão bem… Soluções desesperadas para tempos desesperados.
Na segunda parte o livro, quando a morte já retornou aos seus serviços, ela teria feito um acordo com a humanidade, que passa a reconhecer seu valor. Uma coisa que a morte reconhece é que não estava sendo muito justa com as vidas de pessoas aparentemente saudáveis que ela ceifava sem dar-lhes tempo de se preparar.
A morte passa a enviar envelopes cor de violeta com avisos de sete dias corridos para o falecimento. E esse é o ponto de virada para a parte em que o leitor acompanha a morte descobrindo do que os humanos são feitos.
A partir deste ponto o foco é mais as trapalhadas, desarranjos e desespero humanos, mas à delicadeza da morte observando um homem , cuja carta de sobreaviso voltou inexplicavelmente. Ela, enquanto stalkeia o tal humano, vai tomando conhecimento de seus hábitos, suas ambições, frustrações, alegrias. Essa vigília intriga e comove a morte e é como se o escritor estivesse propondo um segundo desfecho dentro da mesma obra, sendo ambos os desfechos muito distintos em conteúdo e igualmente interessantes, tanto o dos humanos quanto o da morte, como entidade.
Toda a confusão proposta em As Intermitências da Morte se dá pela incerteza/certeza da morte. Na primeira parte por não haver mais a certeza dela e na segunda por sua previsibilidade.
Uma das lições é a de que está bom assim, melhor não mexer no sistema da morte. É melhor que as pessoas continuem morrendo quando lhes é chegada a hora, sem que desencarnem muitos de uma só vez e nem que se prolongue por demais existências que necessitam de um fim. Também é melhor que a morte não dê sobreavisos. A incerteza da data nos impele a prosseguir, querendo sempre ser melhores, estudar mais, conhecer mais, ter momentos felizes com nossos amigos e familiares, momentos genuínos sem o peso do relógio que despertará paralisando tudo abruptamente.
Nessa linha de raciocínio sobre a efemeridade e a incerteza da data de expiração de nossas vidas, dois filmes vieram a mente para complementar as sensações avivadas por essa experiência literária: O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament) e Minha Vida Sem Mim (My Life Without Me).
Cada um desses filmes corresponde bem marcadamente aos sentimentos e clima de cada uma das partes do livro.

Pôster de O Novíssimo Testamento.
O primeiro é uma comédia belga, que recebeu 9 prêmios incluindo melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro de 2016.
Ironia, blasfêmia, humor macabro e muita delicadeza, tudo isso misturado. Deus existe, mora em Bruxelas (cidade por onde começou a criar o mundo), é casado, teve dois filhos: Jesus e Ea.
O personagem Deus, é um sacana, tem problemas com bebidas alcoólicas e trata mal seus filhos. A história não mostra o personagem Jesus, apenas deixa a entender que esse filho, irritado com a maldade do pai, foge de casa para ajudar a humanidade, deixando o pai ainda mais paranoico em relação a sua filha mais nova Ea.
Quando Ea entende que tipo de trabalho o pai faz, onde ela está no mundo e o que aconteceu com seu irmão, ela se senta em frente ao computador do pai e manda para todos os seres humanos vivos um e-mail informando a data de suas mortes. Deus fica furioso e Ea tem então que fugir de casa.
A humanidade demora um pouco para entender o que está acontecendo e dar crédito aos e-mails, assim como foi na greve da morte na obra de Saramago. Entretanto, uma vez assimilado que aquilo é pra valer, o desespero se consome os que tem a morte marcada para logo, pessoas ficam se colocando em risco desnecessário para testar se só vão morrer mesmo no dia informado, outros largam vidas que não curtem muito e vão aproveitar o tempo que lhes resta, enfim, o ato de rebeldia de Ea revoluciona o mundo.
O final do filme é um barato. Eu não esperava por aquilo. É um desfecho meio lisérgico, bastante justo no contexto do filme, que é uma comédia deliciosa. Pode ser alugada no Youtube.
Saramago quando trata das pessoas que recebem a carta violeta com o aviso de morte, fala de como as pessoas lidaram com aquela nova diretriz . A carta violeta não era enviada a todos, apenas aos que não prenunciavam sua morte, àqueles que estavam saudáveis e seriam ceifados sem estarem nada preparados.

Pôster de Minha vida Sem Mim
O que nos leva ao próximo filme, que conta os últimos dias de uma personagem que não receberia a carta violeta, mas um diagnóstico terminal aos 23 anos de idade.
Minha Vida Sem Mim é a história de uma jovem mulher, que se casou aos 17 anos, tem duas filhas, mora em um trailer no quintal da mãe com os filhos e o marido. Ela não era exatamente infeliz.
A partir do diagnóstico de que tinha no máximo três meses de vida, ela elaborou uma lista de coisas para fazer antes de morrer. A lista consistia em: dizer às filhas que as ama todos os dias muitas vezes; não contar a ninguém sobre a doença; arrumar uma nova esposa para o marido; gravar mensagens de aniversário para cada ano das filhas até que elas completassem 18 anos; beber e fumar o tanto que quisesse; transar com outro homem, só para ver como é; fazer alguém se apaixonar por ela.
Esse filme, de 2003, dirigido por de Isabel Coixet, é uma produção espanhola e canadense que tem no elenco Mark Ruffalo e Debbie Harry (do Blondie, lembra?). A personagem principal é interpretada por Sarah Polley. Foi vencedor de oito prêmios incluindo melhor filme no Goya e no Festival do Cinema Europeu. É triste e lindo demais. Para chorar baldes.
Todas as indicações desse texto são riquíssimas na proposição de reflexões. O que une a todas é a ideia, por vezes melancólica e noutras bem humorada, sobre a finitude da vida e sobre o que importa. O que gostaríamos de deixar como registro de nossa passagem pela Terra? Do que gostaríamos de nos lembrar sobre nossas próprias vidas?
SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
COIXET, Isabel. Minha Vida Sem Mim. Espanha e Canadá: Sony Pictures, 2003.
DORMAEL, Jaco Van. O Novíssimo Testamento. Bélgica: Imovision, 2015.
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