
Capa de Daisy Jones & The Six
“Mas acho que o Teddy percebeu o que estava pensando porque ele falou: ‘Ela não deu mais nenhuma opção Billy. Porque não existem opções. Tem gente que consegue lidar com bebida e droga. Você não. Então Isso precisa parar agora.’
Isso me fez lembrar de quando era criança, com uns seis ou sete anos. Eu adorava colecionar aqueles carrinhos Matchbox, era obcecado por aquelas coisas. Mas minha mãe não tinha grana para comprar todos os que eu queria. Então eu ficava procurando na calçada, para o caso de alguém ter perdido algum. Até consegui alguns carrinhos desse jeito e quando brincava com os outros meninos do bairro, às vezes surrupiava um ou outro deles. Cheguei até a roubar uns no mercadinho. Quando minha mãe descobriu, sentou comigo e perguntou: ‘Por que você não pode se contentar em ter menos carrinhos como todo mundo?’
Nunca encontrei resposta para isso.”
REID, Taylor Jenkins. Daisy Jones & The Six. P. 79.
Temos aí em produção por Reese Witherspoon e pela própria autora Taylor Jenkins Reid uma série sobre o livro Daisy Jones & The Six. Já adianto que vou assistir a essa série e mais o que quer que essa história vire em audiovisual. Um detalhe é que a Daisy Jones será interpretada por uma neta de Elvis Presley: Riley Keough.
A história se parece muito com histórias de bandas de rock dos anos 60 e 70 em geral. Vai agradar a quem gostou do filme Quase Famosos, por exemplo. À despeito da pouca surpresa com a trama ele foi muito bem escrito e tem um final interessante, que torna a personagem Camila uma das melhores nesse caldo de confusões.

Pôster de Quase Famosos
Daisy Jones & The Six fala da trajetória da banda The Six, composta por cinco homens e uma guitarrista mulher, que é conduzida pelas circunstâncias a incorporar outra vocalista e compositora chamada Daisy.
Essas histórias que fazem alusão às músicas produzidas naquela época têm minha atenção porque remetem a canções e ritmos dos quais eu gosto, apesar de só tê-los conhecido a partir da década de 90, quando muitas daquelas bandas já não existiam mais.
Principais temas do livro: papel da mulher na cena rock’n’roll; abuso de substâncias tóxicas e vício; música; trabalho em equipe.
Daisy Jones é uma mulher talentosa, com graves problemas de consumo de drogas, lindíssima e que tem uma carreira solo promissora iniciando em Los Angeles. Concomitantemente, estão o The Six, iniciando também a trajetória da banda. Os Six despontam como uma revelação no início dos anos 70. Eles eram uma banda liderada (a contragosto de alguns) pelo vocalista e compositor Billy.
Certa vez, Billy compõe uma música para sua esposa Camila e o produtor lança a ideia de fazer um dueto com uma convidada. Eis que surge Daisy como a melhor opção. A música faz tanto sucesso que eleva os Six ao terceiro lugar da Billboard e chama atenção para Daisy que passa a abrir os shows dos Six e, posteriormente, a integrar a banda como membro fixo.
Enquanto estamos lendo parece que aquele pessoal existiu de verdade e dá muita vontade de procura-los no Spotfy. Isso pode ser uma indicação de que a trilha sonora da série será bem bacana. Taylor Jenkins Reid redigiu inclusive as letras das músicas de sucesso, que estão todas no final do livro.
Esse efeito de verossimilhança se deve ao fato de que aquela história se assemelha à de bandas verdadeiras, incorpora dramas comuns de pessoas que viveram de arte nos Estados Unidos dos anos 60 e 70 e são bem conhecidos do público. Se deve também à mistura de nomes fictícios e outros reais, como se a banda tivesse se relacionado com outros artistas e produtores que realmente existiram. O estilo narrativo é o mais interessante. A obra é toda escrita como se fosse construída por uma biógrafa da banda que entrevista os membros e pessoas que eram próximas a eles, recorre a revistas e jornais e vai reconstituindo os passos desde a carreira independente de Daisy em relação à banda até o derradeiro show que marcou o rompimento da banda de maior sucesso dos anos 70.
O maior mérito, que é justamente esse método narrativo, lembra instantaneamente dois filmes maravilhosos, um deles é Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, e o outro, que é declaradamente inspirado em Cidadão Kane, se chama Velvet Goldmine (1998).

Cena de Cidadão Kane
“Rosebud” é a última palavra pronunciada pelo maior magnata das comunicações dos Estados Unidos chamado Charles Foster Kane. A partir dessa palavra um jornalista sai entrevistando pessoas e investigando o que poderia significar Rosebud. Dizem as más línguas, que o personagem Kane foi construído com base na vida do personagem real William Randolph Hearst. Cidadão Kane foi indicado a oito Oscars, vencendo o de melhor roteiro original e é um marco do cinema mundial.
Nesta esteira de contar a história em forma de entrevistas construindo um documentário investigativo, supostamente inspirado em casos reais, está Velvet Goldmine. Nessa história o agente investigador é o jornalista Arthur Stuart, que recebe a incumbência de escrever uma matéria sobre o roqueiro Brian Slade, que fora assassinado no palco no auge da fama em um show e sobre o qual paira a dúvida se ele teria realmente morrido ou apenas forjado a morte apoteótica para sair de cena e dar um golpe publicitário.

Pôster de Velvet Goldmine
Uma das principais polêmicas do filme é que ele teria sido inspirado na vida de David Bowie, que “matou” o personagem Ziggy Stardust no palco, quando decidiu mudar os rumos de sua brilhante carreira, causando enorme comoção, assim como Brian Slade morreu enquanto performava como Maxwell Demon, seu alter ego.
As coincidências não param por aí o filme retrata o ambiente do Glam Rock, Brian Slade, assim como Bowie teve um relacionamento com Iggy Pop, teve um caso com o roqueiro (que não veste camisa quase nunca) Curt Wild. Sobre o figurino que rendeu um Bafta e uma indicação ao Oscar, é possível notar que, junto com a maquiagem primorosa, a caracterização aproxima muito os personagens ficcionais dos reais. Tipo: só não vê as coincidências quem não quer ou não conhece a história.
A trilha sonora é fantástica, à despeito de David Bowie ter proibido o uso de suas canções alegando que faria um projeto semelhante no futuro. O nome do filme vem da música Velvet Goldmine de David Bowie no álbum The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars, de 1972.

Cena de Velvet Goldmine
Além do mais, Velvet Goldmine é um filme sobre um rockstar dos anos 70, mesma época em que teria existido Daisy Jones & The Six, passando por vários problemas semelhantes.
No meio da história de Daisy, ela faz quase exatamente o que Rachel Green faz em Friends quando começa a namorar Paolo.
Para esquecer ou para mascarar sentimentos, essas duas mulheres estadunidenses se envolvem com homens italianos que não são muito boa bisca, cada um a seu modo.

Cartaz de Friends
Paolo era mulherengo e ensimesmado e Nicolo, par de Daisy, era um bom vivant, que se apresenta como sendo um príncipe da Itália, que já não era uma monarquia há muito tempo (família real brasileira feelings). Os dois embustes italianos foram paixões momentâneas que às entretiveram enquanto relutavam em assumir seus verdadeiros sentimentos por outros rapazes. Lembram do Ross?
Nesse ponto, falando especificamente de Daisy e Nicolo, esse homem, aliás esse casal, podia ter seu comportamento resumido pela a letra de Blister in The Sun, da banda Violent Femmes.
Blister in the Sun, bolha no sol em tradução livre, seria como uma bolha que estoura e queima o que está em volta com os respingos de sol. Fala de um homem tão drogado que perde a noção das coisas e sai importunando todo mundo sem se dar conta disso. E o pior: ele gosta! “Let me go on, like a blister in the sun. Let me go ooon…”. No caso, pelo menos eram duas blisters in the sun, magoavam quem estava no entorno, mas entre eles havia uma “sintonia” enquanto durou.
Enfim, Daisy Jones & The Six é um livro muito bacana para quem gosta de música e para quem gosta de história de artistas desgovernados.
*Em homenagem à amiga Paula Ferrari, que reunia todas as qualidades das mulheres criadas por Taylor Jenkins Reid nesse livro e muitas outras virtudes. Decidida e inteligente como Daisy, Karen e Camila e bacana como Simone. Já faz muita falta! Um abraço a todos os que perderam pessoas amadas para o Covid-19.
REID, Taylor Jenkins. Daisy Jones & The Six. Tradução: BOIDE, Alexandre. São Paulo: Paralela, 2019.
WELLES, Orson. Cidadão Kane. EUA: Radio Pictures, 1941.
HAYNES, Todd. Velvet Goldmine. EUA e UK: 1998.
CROWE, Cameron. Quase Famosos. EUA: DreamWorks e Columbia Pictures, 2000.
KAUFMAN, Martha & CRANE, David. Friends. EUA: Warner Bros, 1994-2004.
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